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Organizando pra desorganizar pela Ação Direta

Um relato e análise do ato contra a PEC de 29/11/2016

por Nigganark

“Posso sair daqui para me organizar;
Posso sair daqui para desorganizar”
Chico Science, Da Lama ao Caos

Quem não se organiza será organizado por outros. Se um grupo não se organizar e lutar para gerir sua vida, comunidade, sociedade, será organizado por outros setores que definirão os seus rumos, horizontes e perspectivas. É mais ou menos isso que o anarquista e revolucionário Errico Malatesta disse em um famoso texto chamado “A Organização das Massas Operárias Contra o Governo e os Patrões”, de 1897. Como atualmente estamos em tempos de retrocessos políticos, intuo que esta afirmação é mais atual do que nunca: não temos decisões efetivas sobre a forma e conteúdo de nosso trabalho; nossa alimentação é toda pré-definida por interesses do agronegócio; nossa educação é determinada por interesses capitalistas e coloniais, com uma pedagogia autoritária; nossa saúde é destroçada por um ritmo de sociedade que não escolhemos e nosso tratamento é hierarquicamente decidido por uma medicina que, quando nos atende, nos enche de químicos que não compreendemos bem; mesmo nossos desejos, gostos, sexualidades são definidos por interesses de cima – e a quem disso divergir está destinada uma bela repressão.

Esta organização da sociedade nos prejudica coletivamente; trás privilégios, riquezas e pleno gozo a uma parcela mínima dos bilhões de humanos habitantes do globo. Menos de um por cento. Há muito tempo as coisas estão organizadas assim. Mas há muito tempo também há luta e mecanismos de resistência. A Ação Direta, por exemplo, é um princípio revolucionário – herdeiro principalmente do movimento operário anarquista – que foi constituído como forma direta e imediata de simultaneamente resistir e atacar esta organização social; de fazer da destruição um ato criador.

Falo da Ação Direta porque no ciclo de mobilizações contra a recentemente aprovada Proposta de Emenda Constitucional do teto de gastos (PEC 241/55) ela foi utilizada como principal metodologia de luta: seja nas ocupações de escolas/universidades, nos atos de rua, nos ensejos de organização democrática e participativa. Falo também porque a Ação Direta nos trouxe algumas lições durante o ato contra a votação final da PEC da morte (outro nome carinhoso para esta medida ridícula) , ocorrido em Brasília no dia 13/12/2016. Gostaria de pedir, sabendo das dificuldades de ler longos textos presentes em nosso tempo, que você me acompanhe neste logo texto. Talvez ele contribua para a nossa reflexão.

Vamo que vamo.

* Entreatos: da baderna do 29/11 à preparação do 13/12

As manifestações do dia 29/11 referentes à votação do primeiro turno da PEC 55 no senado tiveram enorme repercussão. Tanto as cenas da repressão policial como, principalmente, a das táticas de resistência empregadas por determinados grupos presentes no ato abriram um amplo leque de análises. Por um lado, o conjunto das avaliações da esquerda foram consensualmente críticas e de alerta à violência estatal generalizada contra manifestantes. Por outro lado, as análises sobre a composição e forma da manifestação foram mais diversas e críticas em relação aos métodos empregados pelos agentes em luta. Defensores e críticos do método da ação direta tiveram um duradouro embate sobre qual o significado do ocorrido, protagonizando uma real “disputa de narrativas”. O debate girou em falso sobre a mítica figura dos “infiltrados” – se eles existiram ou não, foram protagonistas ou mesmo desencadearam todo o clima de repressão. As diferentes posições sobre infiltração derivavam das diferentes concepções sobre ação direta.

A mídia hegemônica, como tradicional, criminalizou as manifestações. Houve uma ação de “reparo” às pichações contra a PEC que estavam no Museu Nacional de Brasília, capitaneada por grupos conservadores da cidade. As repercussões institucionais também foram relevantes. Tanto no plano federal como no governo local diversas reuniões e procedimentos ocorreram para dar resposta do estado ao ocorrido no dia 29/11. Obviamente, nenhuma movimentação foi no sentido de apurar abusos, violações de direitos humanos ou truculências. O problema que esquentava na mesa dos gestores estatais era de que aquela mobilização, mais do que demonstrar a força policial, abriu dúvidas sobre a capacidade do estado manter a ordem em manifestações radicalizadas. Havia muito medo sobre o que poderia ocorrer na iminente manifestação contra a PEC 55 que ocorreria na data do segundo turno da votação da proposta. Era necessário, assim, uma resposta incisiva e definitiva da capacidade de controle.

Por outro lado, para o conjunto dos participantes da manifestação, igualmente, as lições de uma polícia simultaneamente violenta e organizada; que age de forma incisiva e quase letal; que demonstra algum planejamento bem como determinação em desestruturar totalmente as táticas de manifestação também foram sentidas. Muitas avaliações projetaram sobre como teria sido o ato de 29/11 caso muitas pessoas estivessem de fato preparadas para o embate – não apenas nas intenções, mas nas ferramentas e organização. Cogitava-se inclusive que com uma tática melhor preparada poder-se-ia ter mudado os rumos da maldita aprovação da PEC 55. A vexatória e esdrúxula performance do senador petista Jorge Viana – quando houve possibilidade de assumir a presidência do Senado e barrar a votação da PEC 55 – foi como um ultimato da chance de, por meio das instituições, conquistar alguma mudança nesta conjuntura sombria de aprofundamento neoliberal. Após um ministro do Supremo Tribunal Federal determinar afastamento do presidente do senado Renan Calheiros, o senador petista poderia assumir a presidência da casa e postergar a data da votação para o próximo ano, dando um fôlego aos movimentos sociais em luta. Preferiu, ao contrário, se acovardar ao enfrentamento e inclusive atuar para que o STF revertesse a decisão anteriormente tomada. Ou seja, deu de ombros à luta e abraçou a ordem estabelecida. A sensação a quem lutava era: ou éramos nós por nós ou nada.
* Preparação, indefinição e tensão
Se no dia 29/11 os chamados foram difusos, simultâneos e realizados por diferentes coletivos, para o dia 13/12 os chamados foram muito mais esparsos. Até alguns dias antes do segundo turno da votação da PEC pouco se sabia sobre a realização ou não de um ato. Comentava-se que as entidades haviam gasto muito dinheiro na manifestação anterior, sem capacidade de reposição com a mesma monta; que outras entidades não queriam apoiar as mobilizações por receio de que ela saísse do controle novamente. Simultaneamente havia notícias da constituição de atos locais simultâneos em diferentes cidades esvaziando um possível ato central na Esplanada dos ministérios.

Esta indecisão sobre a mobilização colocava à vista os próprios conflitos internos dos setores da luta. Por exemplo: ao contrário do que se supõe acerca de uma avassaladora hegemonia burocrática nas lutas sindicais, há um crescente setor independente, autônomo, classista que realiza lutas sindicais e disputas internas. Este setor tem conquistado espaço junto a algumas direções de sindicatos e, principalmente, constituiu – por meio das greves e piquetes – um foco de ação classista em oposição à política de austeridade. Sua intervenção nos Comandos de Greve – especialmente do campo da educação – forjou o contraponto sindical à criminalização (realizada pelas centrais sindicais) da ação direta de 29/11 e o impulso para a realização de uma nova mobilização em Brasília no dia 13/12.

Assim, o bloco inicial que constituiu a mobilização para os segundo turno da PEC 55 foi este setor que denominarei aqui como o Setor de Ação Direta: sindicalismo classista e movimento das ocupas estudantis. Em quantidade bem menor que no ato anterior, porém ainda significativa, ônibus de diferentes cidades vieram para Brasília para realizar a mobilização. Os financiamentos foram mais diversos, em algumas localidades manteve-se a articulação com direções sindicais tradicionais locais e, em outras, formas alternativas foram utilizadas para viabilizar o recurso: houve caravanas financiadas por rifas, pedágios e festas(!). A Frente Povo Sem Medo adotou a tática de realizar manifestações locais, mobilizando suas bases locais para a manifestação em Brasília. O Sindicalismo Tradicional oscilou entre mobilizar as categorias e participar de algumas articulações anteriores, mas sem destinar força real à mobilização.

Ao contrário da mobilização passada, ocorreram algumas reuniões de articulação do ato envolvendo participantes dos três setores principais da mobilização (Frente Povo Sem Medo, Frente Brasil Popular, Setor de Ação Direta). Além disso, plenárias internas anteriores foram realizadas pelos distintos grupos, planejando formas de ação na Esplanada durante o ato. Alguns militantes estudantis de outras cidades haviam ficado em Brasília no período entre as duas manifestações na intenção de articular melhor um segundo ato, fazendo a conexão estudantil nacional e também a articulação com outros setores. Junto às caravanas que chegaram antes do ato, foi realizada, na véspera, uma plenária de preparação para o ato. Lá foi apresentado um conjunto de planejamentos para que a mobilização constituísse uma linha política comum, diferente do 29/11. A programação era de que a concentração se desenvolvesse-se no decorrer da tarde, com indicações de uma crescente na esplanada até o começo da noite – quando o ato finalmente ocorreria em paralelo à votação da PEC. Avaliava-se que a antecipação do horário da votação pretendida pelo presidente do Senado era uma manobra que não daria certo e que a votação finalmente ocorreria no início da noite, como no ato passado. Assim sendo foi sugerido que as mobilizações mais radicalizadas fossem organizadas para o ápice da mobilização, numa tentativa de coordenar a ação direta e a ação sindical em horários distintos. A longa duração da sessão do senado permitiria que o conflito entre os diferentes setores fosse contornado.

Como agora já sabemos, esta proposta partia de uma avaliação equivocada sobre a manobra do presidente do senado. Mas já na assembleia estudantil o plano não chegou a ser aprovado e, ao contrário, desencadeou um conjunto de cisões e debates acalorados entre os grupos/delegações presentes. Apesar dos esforços anteriores, a capacidade de articulação e confiança mútua entre os distintos setores do movimento estudantil ainda estava um tanto fragilizada. Diferentes avaliações sobre como lidar com a polícia, qual a política de articulação com outros setores ou mesmo se seria possível ou não barrar a aprovação da PEC 55 não produziram ambiente para uma melhor articulação geral estudantil. Talvez a única unidade fosse na impressão geral de que haveria confronto na manifestação e que deveria haver resistência. Foi deliberado, finalmente, que um bloco estudantil caminharia, fechando as ruas da cidade, da UnB até a esplanada (pouco mais de quatro quilômetros) e se somaria aos outros blocos para realização da manifestação.

Na manhã do dia 13, porém, a institucionalidade mostrou todo seu vigor: a manobra do Senado deu certo e a votação encerrou-se pouco depois das 13h; a operação policial amplamente divulgada pela mídia no dia anterior realizou revistas em todos os ônibus que vinham de outras cidades, apreendendo vinagres, pessoas e tudo o que pudesse ser considerado objeto de vandalismo. Um cerco enorme foi montado na esplanada para dar a clara impressão de que a ação estatal seria efetiva neste caso: um total de três mil e quinhentos policiais e demais agentes de segurança pública foram mobilizados e a esplanada foi fechada na meia noite da manhã anterior; toda cidade foi alarmada.

* Um ato que explodiu e dissolveu pela cidade

Nota: Como o ato teve um desenvolvimento pelo tecido da cidade, esbocei para fins do relato este mapa demarcando os locais por onde a manifestação passou ou alguns pontos de referência para quem quiser se localizar espacialmente no relato. É um mapa desproporcional, mas que ajuda a se referenciar. Durante a descrição do ocorrido, sugiro que retorne a este mapa para que assim compreenda as trajetórias dos diferentes grupos.

A PEC da morte foi aprovada aproximadamente às 13h – uma hora antes do chamado para concentração do ato. Assim, a mobilização marcada para a tarde mudou radicalmente seu caráter. Qualquer planejamento sobre interferir ou participar do momento histórico da votação da PEC 55 foi aniquilado pelos fatos. A sensação nos primeiros momentos pós-votação era confusa: as dúvidas sobre os motivos de realizar um ato no exato momento da aprovação; a sensação de ser vítima de uma manobra dos poderosos; a constatação de que o retrocesso já estava aprovado. Muitos chegaram a cogitar, pelas redes sociais, se haveria ou não manifestação uma vez que a PEC já havia sido aprovada. Era como se estivéssemos vivendo um imenso delay histórico.

Às 14h, na esplanada, o ambiente era ansioso, esparso e com um vazio a ser preenchido. A presença policial era ostensiva e tomava conta de todo ambiente. As notícias da manhã eram de que todos os ônibus continuavam sendo parados e revistados violentamente na entrada da cidade, com algumas pessoas detidas e objetos apreendidos. Não se sabia quantas pessoas estariam presentes no ato nem de onde surgiriam. O Bloco Estudantil saiu do Campus da UnB em caminhada para a esplanada, fechando a via L2 Norte. Outros ônibus de outras cidades haviam chegado mais cedo e estavam meio perdidos, meio ilhados, espalhados em diferentes pontos da esplanada. Havia, no Museu da Nacional de Brasília, uma concentração dos setores sindicais, principalmente do movimento da área de educação. Caravanas do MST e MTST chegaram em bom número aproximadamente às 15h30.

Tratava-se de um ato muito diferente do anterior: os blocos eram mais organizados, a predominância dos setores de ação direta (tanto no movimento sindical quanto estudantil) era mais evidente e, em função da truculência policial, os carros de som não foram liberados para realizar o trajeto previsto. Os setores do movimento popular presentes participaram ativamente da mobilização, porém sem o protagonismo que exerceram em outras cidades – talvez pela ausência do carro de som ou talvez a própria opção de alguns destes movimentos em realizar uma participação de suporte e apoio. Sem os alto-falantes e discursos amplificados, um grande silêncio tomava conta do momento da concentração. Nele estavam presentes muitas coisas: as dúvidas sobre como realizar o ato em meio a tanta vigilância; a reorganização do trajeto, como fazer uma mobilização contundente em um cenário de repressão, aprovação da PEC e menor número de manifestantes que o ato anterior. Centralmente, havia um bloqueio policial enorme logo após a catedral. Este bloqueio não deixaria ninguém passar sem ser revistado e ter objetos ou mesmo o corpo apreendidos. Ficamos parados por horas e a pergunta no ar era “o que diabos é possível fazer?”

Esta pergunta esbarrava no fato de que, nesta manifestação, não era possível algum burocrata dizer que ‘havia uma minoria de vândalos/as infiltrados querendo desvirtuar o sentido original traçado pela manifestação’ (SIC). Tratava-se de um ato composto principalmente pelos setores de ação direta, organizada para agir e resistir à violência capitalista/institucional. Às 17h, quando aproximadamente começou a movimentação do ato, suponho que havia algo próximo a cinco mil pessoas presentes. A polícia fazia questão de revistar a todas e todos, em fila. Para além da possibilidade de ser incriminado/a por motivos torpes, a revista consistiria de fato em uma humilhação estatal, um ato de suplício que determinaria quem teria o controle sobre a mobilização. Três opções circulavam entre os blocos: aceitar o baculejo policial, cedendo e realizando um ato simbólico na esplanada; forçar a passagem do bloco sem a realização da revista generalizada, a partir de pressão e negociação com o comando da mobilização; modificar o trajeto do ato, indo para outro rumo que não a esplanada.

A disposição espacial da mobilização era, neste momento: (Museu Nacional)-> Frente Brasil Popular -> Frente Povo Sem Medo -> Bloco Estudantil <- Bloqueio Policial – (Catedral). O bloco estudantil estava à frente, visualmente estruturado para a ação direta: o corpo todo coberto; máscaras de proteção do sistema respiratório e da identidade; organizado em grupos de afinidade que se cuidariam nos momentos de tensão; com dinâmica de bandeiras em diferentes cores pra indicar quando prosseguir, parar, recuar, reagrupar; materiais para ressignificações urbanas; escudos, vinagre, leite de magnésia, comissão de primeiros socorros; organização interna para decidir como responder às investidas externas. Um jogral foi puxado por uma estudante. Ela informou sobre a decisão da PM da manifestação só prosseguir caso houvesse revista de todo mundo e da deliberação do movimento em realizar a manifestação sem ser revistado. Informou que a manifestação seguiria, que não seria revistada e que o ato seguiria à esplanada independente de qualquer decisão arbitrária da polícia.

As baterias ressoaram, as palavras de ordem ficaram mais incisivas, as balaclavas subiram ao nariz. Um cheiro de vinagre começou a se confundir com gás lacrimogênio. O bloco se aproximou e caminhou rumo à esplanada, chegando nariz a nariz com o bloqueio policial. “Deixa passar a revolta popular” foi uma das últimas palavras de ordem ouvidas antes das bombas começarem a estourar. O conflito inicial, entre as duas linhas de frente, foi composto por um brutal e bestial ataque da polícia. Policiais abriram mão de suas armas e atacaram com paus e pedras que vinham do lado de cá; roubaram os escudos e passaram a se defender com as madeirites pintadas com “Poder para o povo”. O bloqueio da tropa de choque policial utilizou lacrimogênio, spray de pimenta, bombas de efeito moral, balas de borracha. Uma nova bomba, que faz barulho, emite luz e solta gás lacrimogênio como um buscapé também foi utilizada. A repressão policial abriu-se rapidamente.

Este primeiro ataque policial foi brutal e muito eficiente em desestruturar o primeiro momento da manifestação: as barricadas utilizadas dia 29/11 foram rapidamente desmontadas; as bombas de gás asfixiaram qualquer tentativa de reaglomeração e resistência na rua; o bloco policial não parou de avançar de forma que recuar tornou-se a única alternativa. Mas como a repressão policial não parava (contrariando uma possível ação tática de utilizar a força bruta para conter e dispersar rapidamente a manifestação), o ato desmembrou-se em vários blocos menores que seguiu distintos caminhos pela cidade, extrapolando o espaço anteriormente previsto para a manifestação. Em suma, a repressão tornou impossível que o ato se dispersasse completamente, pois quem se desgarrava em grupos menores era perseguido e detido pela PM. Ficar organizado e em grupos grandes tornou-se também uma alternativa de autodefesa. Segue uma lista das trajetórias de alguns que parecem ter sido os principais blocos deste segundo momento da mobilização:

– Um grupo embaralhou-se à população na Rodoviária do DF, realizando atos e mobilizações ali mesmo junto a usuários e usuárias de ônibus. Um ônibus da viação TCB foi queimado nestas imediações (cuja foto de um garoto acendendo um cigarro em seu fogo tornou-se símbolo do protesto). A partir daí este grupo ficou ilhado na rodoviária do DF, perseguido dentro dela e com pequenos focos de confronto. A polícia passou a revistar indiscriminadamente qualquer pessoa tida como suspeita e deteve algumas tantas para averiguação. Esta situação durou algumas horas.

– Outro Grupo foi para a Rodoviária da Região Metropolitana (entorno) do Distrito Federal, no outro lado da rua. Alguns ônibus foram quebrados e há relatos de que dirigentes das centrais sindicais burocráticas passaram a denunciar uma ou outra pessoa à polícia como vândalos. Este grupo, espremido pelas bombas de gás lacrimogênio, dividiu-se em dois caminhos: parte subiu as escadas da rodoviária rumo ao andar superior (que dava acesso ao CONIC) e outra parte seguiu pela lateral da rodoviária rumo ao Setor Bancário Sul.

– O grupo que subiu as escadas travou a via imediatamente a frente da escada, utilizando um ônibus como trava da via. Parte deste grupo seguiu para o Setor Bancário Sul e outra parte foi refugiar-se no CONIC. O CONIC, um conjunto de prédios comerciais com formato de galerias de comércio alternativo, foi sitiado pela polícia que passou a prender, espancar e perseguir quaisquer pessoas que pudessem ser identificadas como manifestantes. As lojas e prédios locais fecharam por receio de que a repressão adentrasse suas portas.

– Um grupo grande, vindo pelos dois lados da Rodoviária da Região Metropolitana, encontrou-se no Setor Bancário Sul. A imediata compreensão de que era o setor financeiro quem se beneficiaria da aprovação da PEC estimulou a manifestação a se reorganizar e seguir, ali, realizando intervenções sobre os prédios dos bancos e outras organizações capitalistas beneficiadas pelo corte de gastos. Neste momento, por diferentes motivos (engarrafamento, dispersão, falta de planejamento) a polícia não tinha tropas direcionadas para este grupo, que era o maior remanescente da manifestação. Os/as manifestantes saíram do setor bancário sul rumo à W3 Sul, passando pelo Setor Hoteleiro/Comercial Sul. Neste caminho duas coisas simultâneas ocorreram: alguns bancos privados e sedes de partidos conservadores estavam no caminho. A resposta à repressão e aprovação da PEC 55 atingiu principalmente o Itaú Cultural, Banco Santander e Partido Trabalhista Brasileiro com sprays, paus, pedras. Não foi registrada no IML nenhuma ocorrência de vidros, prédios e placas com risco de vida. Apesar de suas instituições sugarem todo nosso sangue, edificações ainda não possuem sistema nervoso e, portanto, não podem ser vítimas de violência física.

– Chegando ao começo da W3 Sul foi sugerido que a manifestação ali presente caminhasse até a sede local da Rede Globo, localizada cerca de oitocentos metros dali, no começo da W3 Norte. Este setor da cidade estava todo engarrafado tanto pelo horário como pelo caos instaurado há pouco pela repressão. O bloco caminhou sem problemas aparentes até bem perto da sede da Rede Globo, onde uma operação policial estava armada para conter a manifestação. Vários grupos de carros e motos da Rotam e Bope dispersaram mais ainda este bloco, fazendo com que dezenas de pequenos grupos – indo de duas até de cinquenta pessoas – fugissem da repressão rumo às primeiras quadras da asa norte. Um grupo passou pela porta da concessionária da Citroen e entrou na Concessionária, que afirmou ter tido 20 carros depredados.

– Outro grupo correu da Globo para dentro da SQN 302, tentando sair do ato e caminhar rumo à UnB. Esta quadra e suas vizinhas são blocos destinados a parlamentares, ministros, e militares. Os blocos destinados a políticos são normalmente vazios, pois os mesmos utilizam a sua bolsa aluguel pra se hospedarem em resortes ou bairros mais luxuosos da capital. Tanto por denúncias dos moradores destes bairros elitistas como pela perseguição, estes pequenos grupos passaram a viver um jogo de pacman pelas quadras de Brasília, com a diferença de não haver qualquer pílula que transformasse momentaneamente os fantasmas em seres inofensivos. Muitas pessoas conseguiram se esgueirar e fugir pelas quadras. Outras tantas foram detidas e jogadas ao escárnio público de moradores/as conservadores/as da cidade. Há que se ressaltar, porém, que muitos/as moradores/as ajudaram pessoas que fugiam, ofereceram abrigo, indicaram caminhos e filmaram arbitrariedades policiais. Para a mídia corporativa, obviamente, só os relatos conservadores servem e importam. O ato contra a PEC havia enfim se dissolvido na cidade.

Não foram poucos os casos de tortura, repressão e violência policial neste momento, espalhados em toda a cidade. Várias pessoas presas tomaram chutes, socos e pisões quando já algemadas e deitadas. Outras tiveram sprays de pimenta jogados diretamente em suas faces quando já rendidas. Outras tantas ouviram as mais distintas ameaças, recheadas de todos os preconceitos machistas, racistas, homofóbicos a depender de qual grupo social fossem identificados. Pessoas caminhavam pelas ruas com medo da mais simples presença policial, que podia tornar-se agressiva a qualquer momento e em qualquer local/hora. Durante muitos dias depois a sensação ainda seria a de se perceber-se perseguido/a por agentes da lei.

* Pós-ato, vigília e tentativas de enquadramento

Neste momento, enfim, não havia qualquer foco de manifestação pela cidade. As pessoas foram trocando mensagens, tentando se localizar, compreender o número de detidos/as e organizar redes de apoio. As delegações de fora de Brasília estavam localizando se havia algum/a preso/a de suas cidades. “Você está bem? Onde você está?” devem ter sido trendtopics das agências de monitoramento das redes sociais. Muitas pessoas feridas estavam se tratando e tentando evitar maiores sequelas da repressão. Ao fim, foram localizados/as a maioria das pessoas presas. Estavam ou na 5ªDP, na Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA) ou no Departamento de Polícia Especializada (DPE). Com a exceção de um adolescente que foi mantido na DCA, todas/os detidos/as que não foram liberados imediatamente foram levados à DPE. Convocou-se então uma vigília de apoio aos manifestantes na porta da Delegacia.

Aos poucos foram chegando diversos militantes na porta da Delegacia. Não havia uma dimensão exata do número de pessoas detidas naquele momento, mas falava-se em um número que girava entre cinquenta e cem pessoas. Advogados/as chegaram e, após muita insistência, conseguiram entrar para encontrar as pessoas detidas. Chegamos ao número de sessenta e quatro pessoas presas quando a lista geral foi liberada pela polícia. Junto dela, também, a intenção de enquadrar todos/as detidos no artigo 20 da Lei de Segurança Nacional. Este, datado de 1983,

“Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências.
Art. 20 – Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas. Pena: reclusão, de 3 a 10 anos. Parágrafo único – Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até o dobro; se resulta morte, aumenta-se até o triplo.”

Este enquadramento era altamente arbitrário pois não havia identificação nem flagrante das pessoas detidas cometendo qualquer delito; o enquadramento seria realizado coletivamente sem discriminação individual (de um conjunto de pessoas presas a esmo na manifestação); finalmente porque uma lei oriunda da Ditadura Militar para atacar grupos políticos tratados como terroristas não deveria ser utilizada nos dias de hoje. Caso isso ocorresse, estava aberto mais um precedente do estado de exceção para criminalização dos movimentos sociais.

A rede de apoio avolumou-se e fez diferentes atividades de pressão/solidariedade: muitos/as advogados/as foram contatados/as, ligações e articulações junto a setores de direitos humanos, agentes institucionais. Chamado a parlamentares locais e federais para realizarem intermediação na DPE e também pressão junto ao executivo local. A vigília uniu diferentes grupos à frente da DPE que, à sua maneira, faziam ligações e informes para outros grupos, compravam comidas e suprimentos para as pessoas presas; montaram um conjunto de tendas para que se abrigassem madrugada adentro enquanto a acusação definia-se ou não em relação a quem fora detido/a. Toda esta pressão teve resultado: horas depois da entrada de parlamentares e representantes do governo para mediar com a polícia, foi retirada a acusação de violação da Lei de Segurança Nacional. Todos/as detidos assinaram um termo circunstanciado e foram, durante longas horas madrugada adentro, sendo liberados/as. Todas/os, ao sair, relataram todo o terror que passaram na mão da polícia desde suas detenções (quando muitos foram torturados/as, espancados/as e ameaçados/as de morte), ao tratamento humilhante que receberam na DPE e o terror da acusação ao qual estavam sendo acometidos/as sem nenhuma prova. Por força da mobilização, enfim, uma vitória foi conquistada e a Lei de Segurança Nacional foi retirada do caso.

Sobrou somente um adolescente preso. Este, um estudante paranaense, passou a noite dormindo ao relento na DCA, acusado de depredação de patrimônio. As possibilidades aventadas antes da audiência de conciliação era de que ele ficasse preso em Brasília até o fim do processo ou que ficasse em liberdade mas não pudesse sair dos limites do Distrito Federal rumo à sua casa. Novamente, em função de uma boa atuação das conselheiras tutelares envolvidas – junto a advogados/as, parlamentares, movimentos sociais e de direitos humanos – o jovem foi liberado para voltar a sua cidade natal e responder ao processo (com acusações bem mais brandas) em liberdade.

Os dias posteriores ao ato estão ainda constituindo seu legado. Os movimentos sociais estão refletindo internamente sobre a nova conjuntura e perspectivas de ação. O Estado afirmou estar investigando por meio de seus arquivos, vídeos e documentos diversos militantes presentes no ato com intenção de realizar processos posteriores. A PEC da morte foi aprovada com ampla reprovação da sociedade e em sua sequência já foram anunciadas as impopulares e cruéis Reforma da Previdência e Reforma Trabalhista. Os conflitos de 2016 seguirão por algum tempo.

* Legados e desafios

Seguem, enfim, algumas considerações finais sobre esta mobilização e questões futuras

1 – O ato do dia 13/12 de Brasília foi uma manifestação organizada em torno da Ação Direta; não foi um ato ordeiro desvirtuado pelos infiltrados. Ao contrário da manifestação passada, o setor que articulava um tipo de mobilização burocratizada e hierárquica não teve presença determinante na mobilização. Seja pelo aparato de segurança da polícia ter conflitado com o aparato instrumental destes setores ou mesmo por eles não terem investido seriamente na sua autoexpressão durante a mobilização. O conjunto de táticas, organizações, instrumentos e perspectivas da manifestação do dia 13/12 eram orientadas à metodologia de Ação Direta de Rua.

2 – A ação das forças do estado do Distrito Federal tomaram a cena mais uma vez. Em um primeiro momento, pela demonstração de eficácia, controle e rapidez na repressão à mobilização. Em um segundo momento, pela estranha ação de espraiar os blocos de manifestantes pela cidade. Por fim, em sua capacidade de realização do terror urbano e persistência em perseguir manifestantes onde quer que estivessem. A polícia manteve o controle da mobilização, com uma vitória exemplar sobre a manifestação enquanto ela esteve na esplanada. Aparentemente perdeu a dimensão da ação tática quando a manifestação se espalhou pela cidade, entre engarrafamentos, blocos distintos e mudanças de trajetos. Todavia manteve-se em atividade firme mesmo quando aparentemente perdida taticamente.

3 – Junto à disciplina, equipamentos e organização tática, também ganhou destaque a crescente e latente expressão de ódio à manifestação, por parte dos policiais. Em diferentes espaços (seja nas mobilizações, redes sociais e na hora da detenção), agentes da polícia tem apresentado uma valoração pessoal odiosa aos manifestantes, para além do exercício da lei. Este ódio expresso tem encontrado ressonância justamente junto aos setores nobres da população onde uma detenção massiva foi executada. Esta combinação de elementos deve sempre abrir um alerta a qualquer militante, pois carrega traços de violência política que leva a caminhos mais perigosos. Assim, os precedentes de criminalização pela Lei de Segurança Nacional e os relatos de tortura devem ser bem recordados pois podem indicar um acirramento muito mais radical que os que se vislumbra atualmente.

4 – A disposição à Ação Direta aparentemente foi a responsável pela manutenção da manifestação quando da primeira dispersão. Talvez, fosse um ato organizado com uma outra disposição, a resposta à primeira repressão violenta fosse de resignação. Todavia os ensinamentos e traumas do ato anterior foram convertidos em metodologias de resistência que, se não mantiveram o ato pela esplanada, espraiaram-no pela cidade. Contraditoriamente, muitas pessoas relatavam que tentaram sair da manifestação mas em função da repressão direcionada não viram outra forma que não fosse seguir junto aos grupos organizados, como forma de autodefesa.

5 – Dado que a Ação Direta não é debatida abertamente por um amplo setor da esquerda há pelo menos algumas décadas, estamos em um estágio muito preliminar de suas dimensões. Esta característica crescente nas lutas atuais tem diversos méritos (defendidos por quem a emprega) e fragilidades (alardeados por quem a critica) que estão poucos baseados na experiência real vivenciada. Está em aberto a reflexão por parte dos grupos defensores da Ação Direta uma análise profunda sobre quais os possíveis limites e perigos destas formas de ação. Ao contrário de fragilizar, este debate pode trazer mais aprofundamento da perspectiva. Listando algumas questões, podemos refletir por exemplo sobre a contradição em realizar manifestações com métodos de açãos direta antiestatistas e necessitar do apoio institucional para ser libertado/a da repressão (em algum momento a institucionalidade pode não comportar mais setores sensíveis às luta). Também ficou a reflexão sobre como lidaremos com o perigo que enfrentamos: por sorte, algum cuidado dos manifestantes ou decisão tática da repressão, nenhum manifestante se machucou mais seriamente. Por outro lado, o número de pessoas traumatizadas pós-manifestação é muito grande. A repressão à Ação Direta causou simultaneamente revolta popular e sequelas diversas em muitos/as militantes.

6 – Existem, na esquerda, três principais linhas de luta convivendo durante as mobilizações – expressas neste texto cada uma delas pela Frente Brasil Popular, Frente Povo Sem Medo e Setor de Ação Direta. Cada um destes três setores tem um trunfo específico que apresenta publicamente em suas lutas (infraestrutura institucional; capacidade organizativa; contundência na ação). Nas diferentes cidades brasileiras estes três setores tem convivido com mais cooperação ou conflito. Independentemente de quais fragilidades possam apontar um ao outro, todas estas estratégias tem sido derrotadas nas lutas objetivas.

***

“E com o bucho mais cheio comecei a pensar:
Que eu me organizando posso desorganizar
Que eu desorganizando posso me organizar
Que eu me organizando posso desorganizar”,
(Chico Science, da lama ao caos)

A Ação Direta não diz respeito somente a manifestações violentas; é um conceito que trata sobre romper com as mediações que sustentam a organização atual das coisas. As manifestações deste tipo atingem tanto o conteúdo da luta concreta (neste caso a pauta da PEC) como a forma da organização da sociedade capitalista. Ao propiciarem espaços de auto-organização, gestão direta das escolas/universidades, greves radicalizadas e ativas, espaços de luta não burocratizados ou hierárquicos, a luta contra a PEC da morte, ainda que derrotada objetivamente, possibilitou uma vitória que as lutas futuras hão de herdar: aprendemos que nos organizando podemos desorganizar.

Escrito por Nigganark

Agradeço às revisões de Leila Saraiva, Ana Vaz, Germano Corrêa, Carla Coelho, Sara Teixeira, Bianca Campos, Thiago Lima