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guerra e pandemia: produção de um inimigo invisível contra a vida livre

por: Acácio Augusto

Professor no Departamento de Relações Internacionais da UNIFESP e coordenador do LASInTec. Autor
de Política e polícia: cuidados, controles e penalizações de jovens, Rio de Janeiro: Lamparina, 2013


A linguagem…, a linguagem…, dizia meu avô — disse Renzi —, essa frágil e enlouquecida
matéria sem corpo é uma tênue fibra que entrelaça as pequenas arestas
e os ângulos superficiais da vida solitária dos seres humanos porque ela os amarra,
como não? Sim, e os liga, mas só por um instante, antes de voltarem a afundar
nas mesmas sombras em que estavam mergulhados quando nasceram e berraram
pela primeira vez sem ser ouvidos, numa remotíssima sala branca, e de onde, outra vez no
escuro, lançarão em outra sala branca seu último grito antes do fim,
sem que sua voz tampouco chegue, de certo, a ninguém.
Ricardo Piglia. Anos de formação. O diário de Emilio Renzi. 2017

As autoridades governamentais e de organizações internacionais, como o governo brasileiro e a ONU, insistem na retórica da guerra ao vírus para se referir às ações para conter a pandemia da COVID-19 declarada oficialmente no dia 11 de março de 2020. Isso é, também, um atento contra a vida. Não contra a vida em geral, a Ideia de Vida, mas contra a vida real de cada um, a vida livre. Então, se você, virtual leitor, não é patrão, empresário, político, militar ou governante: não caia nesse conto! Não use a metáfora da guerra para se referir a uma luta que é pela vida de cada um e não pela morte de um inimigo invisível e intangível.

Além disso, essa retórica da guerra não fazer sentido, ela apenas atende aos interesses dos que almejam o controle social e político total antes, durante e após a pandemia. A guerra, como sempre foi para esses senhores, é a saúde do Estado. Uma definição clássica de guerra, orienta que ela é um “conflito armado, público e justo”. Portanto, uma guerra segue uma espécie de roteiro, que mesmo sujeito às intempéries do acaso, possui uma forma específica. Há objetivos, um inimigo declarado, etapas a serem cumpridas, planos de ação e hierarquia dos agentes, gente treinada para matar etc. Ela é a realização de um teatro sangrento, i. e., regulado racionalmente e distribuído no espaço. E mesmo que a chamada guerra clássica tenha se metamorfoseado e hoje leve nomes como “conflito de baixa intensidade”, “guerra de quarta geração” ou “estados de violência”, ela segue produzindo um banho de sangue e uma pilha de cadáveres humanos tomados como inimigos (os treinados para a morte do outro lado), e isso não tem nada a ver com um vírus. Ao menos não deveria ter.

O uso de analogias e metáforas militares para se referir à ações sanitárias não é novo, trata-se de algo mais ou menos generalizado na linguagem moderna. Em Vigiar e punir, Michel Foucault demonstra como a tecnologia política disciplinar, vinculada aos modernos saberes médico, militar e criminológico, segue o modelo da peste (muito mais que da guerra) como condição ideal de sua realização. E aí não se está exatamente em situação de guerra, mas de repartição disciplinar dos corpos. Isso justifica o controle total da circulação de pessoas e sua divisão no espaço como forma de contenção da contaminação e a necessidade de sacrifício coletivo. Todos obedecem em nome da salvação pública e cada um pode ser isolado.

Sabemos que as tecnologias disciplinares há muito cederam espaço para as tecnologias políticas da sociedade de controle. No entanto, elementos do efeito disciplinar que se buscava na cidade pestilenta ainda são produzidos, sobretudo a abertura de um campo de capilaridade para exercício dos poderes. Como observa Foucault, “contra a peste que é mistura, a disciplina faz valer seu poder que é de análise. (…) Atrás dos dispositivos disciplinares se lê o terror dos ‘contágios’, da peste, das revoltas, dos crimes,
da vagabundagem, das deserções, das pessoas que aparecem e desaparecem, vivem e morrem na desordem. (…) No fundo dos esquemas disciplinares, a imagem da peste vale por todas as confusões e desordens; assim como a imagem da lepra, do contato a ser cortado, está no fundo do esquema de exclusão. (…) A divisão constante do normal e do anormal, a que todo indivíduo é submetido, leva até nós, e aplicando-os a objetos totalmente diversos, a marcação binária e o exílio dos leprosos; a existência de todo um conjunto de técnicas e instituições que assumem como tarefa medir, controlar e corrigir os anormais, faz funcionar os dispositivos disciplinares que o medo da peste chamava” (Vigiar e punir. ed. Vozes, 2002, p. 164-165).


Mesmo com as metamorfoses do poder disciplinar, notem que não é guerra, mas controle e divisão dos corpos para exercício do poder divisionário e analítico o que está em jogo. E as autoridades continuam dizendo que estamos em guerra. Em texto publicado no dia 22 de março na Folha S. Paulo, o secretário geral da ONU, António Guterres, pontifica que “a Covid-19 é o nosso inimigo comum. Temos de declarar guerra a este vírus. Isso significa que os países têm a responsabilidade de acelerar, reforçar e ampliar a sua ação”. Reiterar que estamos em guerra é o prenúncio de que mortes serão inevitáveis e sacrifícios serão necessários. Insistir na metáfora da guerra é insistir do fomento de uma guerra interna contra e
entre as pessoas, do Estado contra todos e cada um. E, assim, perde-se de saída. Por dois motivos: o primeiro é factual, pois pressupõe que o vírus está fora, quando está dentro. Logo, como conter a “invasão” de algo que já está entre nós e que habita invisível e virtualmente cada um dos corpos?

O outro motivo é ético-político: médicos e demais trabalhadores da saúde não são soldados. Novamente, trata-se de convocar ao sacrifício. Mobilizar a linguagem da guerra contra um não inimigo (o vírus não declarou guerra a ninguém) só aumenta a conflituosidade social, sobretudo entre os “alistamentos voluntários” de pessoas que sentirão autorizadas a dizer como o outro (vizinhos, por exemplo) devem se comportar durante a pandemia, fazendo das pessoas reais e visíveis, virtuais infectados ou vetores do vírus, os reais inimigos. Essa imagem, criada pelas autoridades e pelos os que governam, não apenas corrói a solidariedade social (essa sim eficiente na contenção e mitigação dos efeitos do vírus) como vai elegendo pessoas e grupos como alvos. Nesse momento entram os exércitos e as polícias como elementos “necessários”, agentes da ordem unida que, supostamente, estão atuando de forma
“enérgica” para o bem de todos.

Desta maneira, os controles securitários são justificados como medidas duras, mas necessárias, medidas de exceção para uma situação sem precedentes. Mas a verdade é que as autoridades são apontados como solução de um problema que elas mesmos criaram ao usarem a retórica da guerra e ao se colocarem como única forma de conter o vírus, alçado aos status de inimigo mortal. E isso não é o pior, pois essa lógica se espalha entre os que se sentem autorizados a fazer “o que for necessário”. Se espalha, porque os cidadãos em geral se sentem alistados nessa guerra fictícia, ou melhor, fabricada pela retórica da guerra. E como o vírus é invisível, quem vira o inimigo a ser combatido? Virtualmente, qualquer um ou qualquer grupo social. Exemplos não faltam.

Quando no Brasil a epidemia nem havia se instalado, já corriam relatos de hostilidades contra pessoas com traços asiáticos, com as medidas de isolamento social já em curso. Há relatos de cidadão-polícia que até ovo atiraram em pessoas que estavam sozinhas (sem contato social, portanto) andando de bicicleta na rua. E assim, esse inimigo pode ser os chineses, como insiste o presidente dos EUA Donald Trump e seus asseclas da familícia fascista brasileira; pode ser o imigrante, como foi na Itália; os moradores de rua em qualquer parte do planeta; alguém que (supostamente) desrespeitou a quarentena etc. Em resumo: qualquer um, menos os que produziram essa situação. O campo para o exercício do racismo de Estado se amplifica consideravelmente, inclusive para além das instituições estatais. Muitos, por sua própria condição, serão entregues à mortes e, como já foi dito por diversas autoridades no Brasil, mortes serão necessárias que a “vida volte ao normal e o impacto econômico seja mitigado”.

É impressionante como mobilizar essa linguagem de guerra e sacrifício faz com que militares, políticos, gestores, empresários e corporações multinacionais caridosas (bancos e empresas de tecnologia computo-informacional, sobretudo), se tornem, magicamente, os heróis e salvadores de uma condição que eles mesmo produziram. Basta notar o que está acontecendo no Brasil, onde a conduta fascista grassava muito antes do espalhamento do vírus e, agora, tem um inimigo intangível pronto a se tornar a fonte de todo mal.


Tudo que li sobre o controle do vírus em países que o receberam muito antes do Brasil (posso estar errado, pois não sou especialista em questões médicas) informa que a testagem em massa e uso de máscaras (adequadas), além dos cuidados com higiene e com os grupos mais frágeis, são as principais medidas de contenção e/ou mitigação da epidemia. Mas curiosamente falta máscaras e os testes, até o momento, demoram a aparecer. Será que é muito difícil um esforço excepcional (ah!, a economia essa deusa moderna que senta ao lado do deus Mercado!) para produção de máscaras e testes em massa?Porque são tão rápidos em expandir os controles eletrônicos, os monitoramentos mútuos, as declarações de estado de sítio, a imposição do home office, mas tão lentos para produção ou compra de testes e máscaras?


As notícias em todo planeta também informam que o distanciamento social é necessário neste momento para conter o espalhamento da doença. No entanto, governos declaram quarentena e/ou estado de sítio, mas não investem em testes e equipamentos de proteção, como as máscaras. Falta proteção até para as equipes de médicos e enfermeiros! Pra não falar de entregadores e motoristas de aplicativos, funcionários dos Correios, trabalhadores autônomos e demais trabalhadores que são coagidos a trabalhar sem o devido equipamento de proteção. O que passa então? O que passa é que ao falar de guerra, deixa-se claro que não se trata de conter a epidemia, mas de manter e expandir o controle das ruas, das vias de comunicação, da circulação de bens, pessoas e mercadorias.

Como sabemos, o poder é logístico. A retórica da guerra é isso: o meio pelo qual antes, durante e depois da pandemia, governos de todo planeta vão justificar as milhares de mortes e buscar manter o controle da logística no planeta. Os Estados e as corporações multinacionais possuem interesses próprios que são antagônicos aos da vida de cada pessoa. Quando eles chamarem, não se aliste nessa guerra fabricada. A melhor maneira de lidar com a situação é pelo autocuidado, o apoio mútuo, a ciência, a ação direta e a defesa da vida. Ficar à mercê das autoridades é entregar a vida aos que, desde sempre, apenas jogam com ela.

O vírus não é um inimigo, ele é apenas mais um dos vários fluídos venenosos que nos atravessam ao longo da vida. O COVID19, em especial, pode matar, não trata de diminuir esse truísmo, mas de compreender que ele não é um inimigo. O Estado, sim, além de parasita, é um inimigo da vida livre. Como cantou a banda anarcopunk Crass: “eles nos devem uma vida”. Não entregue a sua à eles. Como também colocam esse inventores do punk em seu manifesto inicial: “não há autoridade a não ser vocês mesmo” (Crass: escritos, diálogos e gritos. Imprensa Marginal/No Gods No Masters, 2017, p. 10).

O Estado e as corporações planetárias não só se interessam por sua vida na medida em que você está disponível a servir, na medida que se entrega à servidão voluntária. A vida não é um fato biológico e não pode estar disponível aos medidores que as contabilizam em bancos de dados estatísticos georreferenciados do nascimento à morte. Vida em servidão não é vida, mas sobrevida.

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