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SUSCETIBILIDADE E VULNERABILIDADE À COVID-19: SOMOS TODOS IGUAIS?

por: Ricardo Rodrigues Teixeira (Professor da Faculdade de Medicina da USP) e Ivan França Jr. (Professor da Faculdade de Saúde Pública da USP)

uma versão bem reduzida desse artigo foi publicada na FSP em 26/03/2020

Até o momento, sabemos que duas abordagens vêm, de algum modo, dando resultados no enfrentamento da epidemia de COVID-19.

Chamaremos a primeira de testagem agressiva e sustentada. Ela busca ativamente pessoas que possam estar infectadas (testagem dos sintomáticos, busca e testagem dos contatos, visitação domiciliar, controle de temperatura, quarentena dos positivos). Esta tem sido basicamente a resposta na Coréia do Sul, Japão e em cidades-estados como Singapura e Hong Kong. Na Coréia do Sul, após testar 222 mil pessoas, houve um decréscimo dos casos novos, mas chegaram a quase 10 mil casos confirmados e 75 mortes. Os demais têm menos de mil casos.

Esta resposta exige um sistema de vigilância epidemiológica forte com recursos para buscar, testar, tratar e isolar pessoas, combinado ao uso intensivo de controles por celular, monitoramento do uso de cartão de crédito e, inclusive, por satélites. Para que seja bem-sucedida, além de um sistema de saúde robusto, é preciso que as pessoas isoladas recebam apoio psicossocial, alimentar e de outras necessidades. Na Coréia do Sul, o sistema de saúde é de acesso universal e gratuito, e considerado o melhor entre os países membros da OCDE.

Esta abordagem é conhecida como estratégia de alto risco, em que o foco está na procura, avaliação e cuidado dos já afetados. Trata-se de uma estratégia fundamentalmente focada nos indivíduos considerados de “alto risco” para a disseminação da doença. Neste caso, os já comprovadamente infectados. Temos razões para acreditar que esse “modelo coreano” tenderá a ser expandido a partir dessa pandemia. Não sem inúmeras implicações ético-políticas que merecem ser discutidas, já que ela envolve graves infrações do direito à privacidade e a implementação de mecanismos de controle individualizado dos cidadãos dignos de um episódio de “Black Mirror”.

Chamaremos a segunda abordagem de distanciamento social. Trata-se de uma estratégia de saúde pública que busca reduzir drasticamente o contato entre pessoas, de tal modo a diminuírem ao máximo as chances de contato entre infectados e não-infectados. Ela envolve medidas de larga escala, como cancelamento de eventos e fechamentos de espaços públicos, bem como decisões individuais de evitar multidões e manter distância mínima entre pessoas. Em situações mais extremas, isso pode significar interromper a circulação de pessoas em regiões, cidades, estados ou até em um país inteiro, bem como promover grande mobilização social para que os cidadãos adotem oautoconfinamento voluntário e prolongado. Independentemente da situação clínica de cada um, o distanciamento social é adotado por todos os habitantes de um dado local e não apenas pelos afetados. Esta abordagem é conhecida como estratégia populacional.

Esta foi a estratégia primordialmente adotada pela China, na cidade de Wuhan, província de Hubei. Foram adotadas várias medidas progressivamente mais restritivas à circulação de pessoas: numa primeira etapa, isolando Wuhan e outras áreas da província de Hubei, visando impedir a exportação de casos; numa segunda etapa, restringindo a circulação de pessoas dentro das cidades, construindo um verdadeiro cordão sanitário. Essas medidas foram o tempo todo mescladas à testagem agressiva e sustentada.

Como na Coréia do Sul, o esforço também tem sido enorme. Segundo a OMS, “em Wuhan mais de 1800 equipes de epidemiologistas, com um mínimo de 5 pessoas/equipe, estão rastreando dezenas de milhares de contatos por dia. O acompanhamento dos contatos próximos dos casos suspeitos é meticuloso, com uma alta porcentagem destes completando a avaliação médica. Entre 1% e 5% dos contatos foram posteriormente casos confirmados em laboratório para COVID-19”. Há alguns dias, não há casos novos e, hoje, a China acumula 81.116 casos e 3231 mortes.

As estratégias populacionais possuem, via de regra, muito maior potencial para obter resultados coletivos que a estratégia de alto risco, mas também possui suas desvantagens. Há consequências econômicas e psicossociais importantes. Afeta o cotidiano de vida e trabalho, ampliando a ocorrência de sofrimento psicossocial, da fome e da pobreza em vastos setores da população. A implementação também pode ser difícil, dada a necessidade de mobilização coletiva para o autoconfinamento prolongado. Exige do Estado uma alta capacidade de controlar centralmente a informação, de coordenar a gestão das ações para sustentar a vida das pessoas e de exercer poder coercitivo externo. Esse “modelo chinês” também possui inúmeras implicações ético-políticas, com outras violações de direitos civis e políticos, que podem impor limites à sua aplicação em sociedades democráticas e abertas.

O “modelo chinês”, confirmando o maior impacto coletivo das estratégias populacionais, conseguiu, ao que tudo indica, interromper a transmissão e zerar o número de casos novos. O “modelo coreano” vem sendo bem-sucedido na estratégia de “achatamento da curva de contágio”, sem zerar totalmente a transmissão, mas conseguindo uma desaceleração considerável, que preserva a capacidade de resposta do sistema de saúde e faz com que a Coréia do Sul venha apresentando uma das menores letalidades. Ambas as estratégias não eliminam o problema do estoque de suscetíveis – daqueles que ainda não se infectaram e podem vir a se infectar se o vírus continuar em circulação –, colocando em dúvida a sustentabilidade do panorama atual nos dois “modelos”.

O caso italiano, que vem sendo tratado como o mais dramático de descontrole no número de casos novos e de óbitos, não adotou efetivamente nenhum dos dois modelos acima. Inicialmente, adotou apenas a testagem dirigida aossintomáticos, sem medidas efetivas de vigilância e busca ativa de novos casos.
Quando a situação saiu do controle, se viu obrigada a adotar o distanciamento social, mas de forma tardia e através de medidas radicais, baseadas em importantes restrições de direito e forte coerção policial. Importante dizer que, a despeito da generalização, houve diferenças de respostas entre várias regiões da Itália, sendo menos afetadas as regiões ou cidades onde se realizou testagem mais agressiva ou o “lockdown” foi instituído mais precocemente.

No Brasil, num momento em já nos encontramos em um nível de resposta que é de “emergência de saúde pública”, estamos tendendo a uma combinação dos dois “modelos”, mas com limites. Segundo o Procedimento Operacional Padronizado estabelecido pelo Ministério de Saúde, a testagem permanece restrita à confirmação diagnóstica de casos suspeitos, com indicação de avaliação dos contatos próximos, encaminhando-se para testagem apenas os casos sintomáticos detectados. Também não houve, até aqui, a busca ativa de pacientes internados em hospitais privados, como ficou evidenciado pelos casos do Hospital Sancta Maggiore, que só foram descobertos quando vieram a óbito, caracterizando uma forma de vigilância “passiva”. Portanto, uma estratégia ainda bem distante da testagem agressiva e sustentada praticada pela Coréia do Sul.
Por outro lado, também vem sendo adotada uma estratégia gradual de distanciamento social, mas com medidas menos drásticas do que a China e numa etapa posterior da epidemia. Sinteticamente, temos, até aqui, uma resposta ínfima na testagem se comparada à coreana e tímida de bloqueio na circulação se comparada à chinesa.

Não se trata de escolher entre um e outro “modelo”, nem sugerir que poderíamos ou deveríamos aplicar qualquer um deles na íntegra e acriticamente. Trata-se, sim, de cotejar as evidências de sucesso e insucesso que dispomos, num contexto que exige respostas rápidas, para agirmos da maneira mais efetiva possível para preservar vidas, sem violação de direitosfundamentais ou a aceitação resignada do impacto brutal que a epidemia terá sobre os mais vulneráveis. Nesse sentido, considerando o estágio em que já nos encontramos da progressão epidêmica, parece-nos urgente acelerar a combinação da testagem agressiva e sustentada e o distanciamento social, mas orientadas pelas singularidades da nossa estrutura econômica e social e pelos valores que estão na base de uma sociedade democrática e solidária.

O Brasil, em princípio, se encontraria entre as países que teriam potencialmente uma das melhores capacidades de resposta por contar com um sistema universal e gratuito de saúde. Mas sabemos que a história do SUS é marcada pelo subfinanciamento crônico, agravado, nos últimos anos, pelo desfinanciamento, com o comprometimento de áreas estratégicas. Para aumentarmos nossa capacidade de testagem, precisamos adotar medidas urgentes de reversão desse cenário e fortalecimento do SUS, em especial, da atenção básica e da vigilância epidemiológica e sanitária, além da assistência médica e multiprofissional necessária para o atendimento dos doentes.

Para tornar efetivo o distanciamento social, precisamos ampliar a mobilização social para o autoconfinamento voluntário prolongado, acionando medidas de mitigação das consequências indesejáveis desse confinamento, em especial,para as populações mais vulneráveis. Medidas que são, de fato, pré-condições para que essas populações possam aderir ao distanciamento social. Em outras palavras, é preciso uma orientação firme e inequívoca das autoridades sanitárias para que o distanciamento social massivo seja praticado. Mas, como sabemos, é na implementação dessa medida que vêm se expressando as mais brutais desigualdades perante essa epidemia. Somos todos suscetíveis, mas a vulnerabilidade é profundamente desigual. São milhões e milhões de brasileiros que vivem do ganho diário para sobreviver, trabalhadores precarizados, sem proteção social, vivendo sem condições adequadas de moradia e de saneamento urbano, quando não vivendo nas ruas. Fundamentalmente, são estes brasileiros que não poderão aderir às medidas de distanciamento social, não porque não queiram, mas porque não podem.

Diante do imperativo desafio de desacelerar a epidemia e preservar tanto quanto possível nossa capacidade de cuidar dos casos mais graves sem o colapso do sistema de saúde (que, presumivelmente, aumentará o número de mortes e não apenas pelo coronavírus), precisamos acelerar e ampliar tanto a estratégia de alto risco, quanto a populacional. Sabemos, contudo, pela experiência de outros países, que as medidas de distanciamento social radical acabam se impondo de forma draconiana quando a epidemia progride para o descontrole. No ponto da curva ascendente de novos casos em que nos encontramos no Brasil, entendemos que o distanciamento social se apresenta como medida emergencial prioritária e mandatória, mas ainda temos a chance de decidir de que maneira iremos implementá-lo. Essa decisão, tecnicamente embasada, apresenta-se, contudo, como uma clara bifurcação política a respeito do papel esperado de um Estado na gestão de uma crise dessa magnitude e gravidade. De um Estado que, obviamente, não se resigna à passividade e a meramente contabilizar os casos e as mortes e narrar os próximos capítulos da catástrofe. Queremos um Estado judiciário-policial que atuará para impor um distanciamento social forçado, com suspensão de direitos e imposição de todos os danos colaterais dessa medida aos mais vulneráveis ou um Estado social e de defesa dos direitos fundamentais, que proverá os meios necessários para que todos, independentemente das condições de vida, possam efetivamente adotar o distanciamento social voluntário.

Não podemos conceber em hipótese alguma que a admissão de mortes que poderiam ser evitadas entre nos cálculos que embasam nossas decisões. O princípio deve ser: ninguém será deixado para trás. Em tempos de embrutecimento dos espíritos, também precisamos estar muito vigilantes em relação ao que enuncia coletivamente nossas decisões, sob pena de fazermos escolhas que podem trazer maior ameaça à nossa sobrevivência como “espécie” do que o próprio vírus.