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pensar com o corpo em risco

por: Bru Pereira

Num texto de 1985, em meio a epidemia de HIV/AIDS, Isabelle Stengers e Didier Gille fazem uma descrição interessante sobre a noção de “grupos de risco” como “batedores avançados” (uma posição no beisebol), “os primeiros a serem atingidos pelo perigo que ameaça a todos, mas também quem pode relatá-lo e alertar aos outros sobre ele”. A recolocação dos grupos de riscos como heróis “que nos contam e nos lembram o que nós somos […] seres vivos, correndo riscos de viver”, veio como uma resposta a atitude de certas pessoas que enquadravam grupos de risco como grupos que nos põe em risco.

No contexto atual, na pandemia COVID-19, a atitude em relação aos grupos de riscos é um tanto quanto diferente daquela dispensada aos grupos de risco de contaminação com HIV em meados da década de 1980. A composição desses dois grupos certamente tem grande influência nessa diferença, enquanto a AIDS acometeu primeiramente homossexuais, mulheres trans/travestis e usuários de drogas injetáveis, a COVID-19 apresenta um risco maior para pessoas idosas.

Mas acredito que a descrição de Stengers e Gille dos grupos de risco como heróis, como aqueles que nos lembram do perigo que nos ameaça a todos, ainda nos ajuda a superar o sentimento de imunidade que parece acometer alguns corpos que, diante da noção de grupo de risco, se sentem protegidos por não pertencerem a ela.

Há poucos dias o presidente irresponsavelmente afirmou que apenas os grupos de risco deveriam se isolar, e que ele próprio, por “ter histórico de atleta”, conseguiria resistir ao novo coronavírus. E nesses dias que seguiram a sua fala, eu tenho acompanhado em notícias e grupos pessoas fazendo eco à ideia de que o perigo só existe para aqueles que fazem parte dos grupos de risco. Eles recusam a lição transmitida por esses grupos: temos um corpo que corre riscos ao viver.

E mais, os grupos de risco ainda nos ensinam que o corpo que temos participa, através de uma rede de fluídos, dos corpos dos outros. (As medidas de distanciamento social parecem se basear nisso.) A constante produção de fluidos corporais nos conecta e uma pandemia nos revela como vivemos nossas vidas através das vidas dos outros. “Viver a vida através da vida dos outros” é uma das definições de Marshall Sahlins sobre o parentesco.

Poderíamos, então, pensar que o que as pessoas com histórico de atleta recusam, para além do ensinamento de um corpo que corre risco, é um modo de estar relacionado em redes de parentesco. Eles recusam a “mutualidade do ser”, como diz Sahlins. Portanto, essa é uma gente perigosa, pois como nos lembram muitos coletivos ameríndios, pessoas sem parentes podem não ser mesmo pessoas. Estejamos atentas.

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