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Coronavírus: apocalipse, continuidade e efeitos na América do Sul

por: Salvador Schavelzon

27 de março de 2020

Surpreende a força do Coronavírus para fechar lojas, interromper a produção industrial – em alguns países – impor um isolamento social com prejuízo econômico ponderável. O Coronavírus fez real o sonho de muitos militantes revolucionários interrompendo a circulação de mercadoria, estabelecendo uma pausa indefinida na opressão do trabalho e na realização do lucro a partir do modelo de produção. Também fez realidade, no Brasil e em outros lugares, o que muitos economistas progressistas propunham em fóruns de debate ou cátedras universitárias, a aprovação de uma renda básica com 100 milhões de destinatários, num congresso conservador que há poucos dias atrás teria ignorado a proposta, ou considerado ela “comunista”.

O Corona talvez até seja capaz de derrubar presidentes e exigir confiscação de infraestrutura privada, pondo a sociedade toda em função da sua restrição. Ele mostra, como força da natureza-sociedade, que o capitalismo não é eterno mas frágil, produto de relações, como a própria vida humana e os arranjos com que ela funciona e se organiza.

Nesse ímpeto mobilizador, até faz pouco tempo impensável, as pessoas sentem a presença do medo de ser contagiados ou de contagiar pessoas queridas, mas também respondem a algo de outra ordem, como uma responsabilidade coletiva, como se o mundo de repente virasse um corpo só, uma verdadeira comunidade, uma sociedade no sentido sociológico clássico, onde uma moral é compartilhada e, a partir dela, encontramos também um sentido e um direito que nasce desse consenso do comum. Trabalhadores da saúde, da produção de alimentos, e outros, se arriscam, como se estivessem indo para a guerra. Ir no mercado, para alguns, é vivido como excursão militar. Para outros a guerra é a continuidade do trabalho, da busca de sustento, que não dá trégua.

Essa coesão social, também nacional, da cidade, do bairro, da família, se impõe contra a doença e contra qualquer opção individual que vá em direção oposta, sem importar interesse de capitalista particular algum, ou qualquer liberdade que antes era inquestionada. Essa repentina “sociedade” não é geral, mas existe com força inusitada entre muitos de nós. O repúdio social contra empresários que mantêm os locais de trabalho funcionando é significativo, também a rejeição generalizada, em alguns espaços sociais, contra quem não cumpra com a recomendação de não circular, ou outros cuidados. Esse consenso corporizado voluntariamente, chama muito a atenção numa sociedade onde a ação coletiva e luta social contra a exploração, a injustiça, contra as condições precárias de trabalho que organizam a vida econômica, se encontravam muito diminuídas ou eram praticamente inexistentes em escala significativa.

A pandemia conseguiu uma mobilização que parecia impossível, e talvez ainda pareça, se o foco dela fosse acabar com o capitalismo, com a exploração abusiva e um modelo social que reduz a expectativa de vida das classes trabalhadoras e também mata, se vemos as consequências e efeito da depredação de florestas e ambientes naturais, modos contaminantes de produção e devastação, e as mortes invisíveis e imensuráveis produto da depressão, do tédio, do risco no trabalho ou na vida metropolitana, se disciplinando ou não ao que é dado.

O capitalismo também mostra sua força, nesse contexto, e consegue reabrir lojas em alguns lugares, consegue ainda lucrar com a pandemia e manter formas de produção de valor ativas, ou descobrindo novas, tornando a pandemia seu laboratório de ensaio de novas formas de expansão. A sua força está principalmente na sua aceitação, onde suas mortes não são contabilizadas. Acreditamos no feitiço das mercadorias como acreditamos na letalidade de um vírus, mas não nos organizamos coletivamente contra ela -mais do que marginalmente- mas a favor dela, porque o sistema conseguiu colocar a continuidade da sobrevivência ao seu favor. Pensamos que trabalhamos para viver, e não pra morrer.

Não temos um social organizado com sua moral e lei contra o capitalismo e o modelo atual de organização da vida, numa verdadeira naturalização do seu funcionamento. Os corações sensíveis que convocam hoje às práticas coletivas de boa higiene, a ficar em casa para desacelerar o contágio, dando existência, assim, à tal de sociedade coesa, irão se desagregar pela própria lógica individualizadora da vida sob regime da mercadoria, diluindo o vínculo comum que hoje aparece, circunstancialmente, na proteção da vida biológica ameaçada por um vírus. Logo depois de enterrar os mortos o mundo irá se incorporar novamente às fileiras organizadas pelo capital, na posição que toque a cada um.

A efetividade do fenômeno Coronavírus para mobilizar uma sociedade, mesmo que essa mobilização se mostre incompleta e, no Brasil, até contestada pela cúpula do governo, é a efetividade do medo. Medo instintivo diante de ameaça invisível, que não discrimina ninguém, embora os meios de tratar sejam sim determinados pela condição social e econômica, de forma diferenciada. O medo mostra que a sociedade, a existência biológica e social dos seus integrantes, pode existir como ação comum que se sobrepõe ao interesse do capital, pelo menos de forma momentânea. Isso não era tão fácil de imaginar possível, longe das revoluções do passado, sem revoluções futuras prefiguradas, num momento onde o conceito de “programa” se mostra obsoleto, tanto quanto qualquer imaginação teleológica sobre caminho de mudança social.

Como exercício epistemológico e político, a reação ao coronavírus permite imaginar que outros desafios coletivos serão possíveis. Sem ter sido motivada pelo curso de um processo revolucionário, a máquina social que é fonte de produção de muita injustiça, parou. E mesmo que isso não possa ser comemorado, porque imediatamente resulta em desamparo e dificuldades materiais mais pesadas para os mais pobres, a reflexão sobre a possibilidade concreta dessa máquina sem comando centralizado parar, tem que ser anotada. Sua fortaleza, necessidade, inexorabilidade pode ser questionada de outra maneira, e seus limites, visíveis também num momento de crise social, podem nos levar a pensar sobre a possibilidade de alternativas à ordem que ela impõe.

A ordem social continua se impondo inclusive quando seu funcionamento normal está suspenso. Não estamos diante do fim da máquina que organiza o mundo social, econômico e cultural, mas há transformações em curso, e é necessário pensar uma posição autônoma e anticapitalista que possa pelo menos fazer a sua própria leitura do processo de re-organização que viveremos enquanto a pandemia é enfrentada. Esse problema, que se perde quando o enfrentamento da pandemia nos impõe fazê-lo com as estruturas atuais de poder político e organização econômica e social que, na realidade, não são alheias ao cenário antropocênico, ou do capitaloceno1, que nos levou até ela.

Certamente o capitalismo saberá como sempre até aqui se metamorfosear e mutar para continuar sua expansão e valorização contínua. De fato, a pandemia também mostra capacidade de acelerar tendências num cenário de renda básica para os pobres, capitalismo de plataforma, monitoramento e controle expandido, crescimento do mercado online, incluindo serviços básicos como educação e saúde, e com descentralização de funções a todo nivel, inclusive dispensando estruturas edilícias para o funcionamento empresarial. Estão se concretando, aceleradamente, as formas de consumo que alguns setores do capital projetavam fazia tempo.

Na mobilização social, ouvimos vozes necessárias que, com certa inocência, confirmam que não há preparo estatal para lidar com uma pandemia. A destruição do sistema público estatal de saúde, a mercantilização dos serviços, mostram que o desenvolvimento de um capitalismo sem responsabilidade pela reprodução das pessoas que produzem e consomem, não permite enfrentar um problema de saúde pública como o atual. A consequência dessas vozes é o chamado para que seja criado algo que, preocupantemente, o modelo atual de sociedade não tem condições de proporcionar.

É de fato já caducada a ideia de que uma sociedade organizada pelo trabalho criará um sistema de previdência, educação, saúde, bem estar. O mesmo não é viável nem desejável, se pensamos os problemas associados a esse modelo nas sociedades que estiveram próximas de alcançá-lo. Foi contra essa sociedade que as rebeliões estudantis e operárias das décadas de 1960 e 1970 na europa, ou o desmoronamento interno da União Soviética aconteceram. O capitalismo que vemos hoje é a reação às lutas e transformações que vieram depois da desestruturação de um modelo mais rígido, localizado, relacionado com uma cultura, hierarquizada e burocratizada de funcionamento, e uma estética árida e autoritária de disciplinamento enquadramento.

Qual será o capitalismo que teremos então depois da pandemia? Ele nascerá do apocalipse de corpos empilhados e já estava aqui, porque não é do nada que uma pandemia nasce e se reproduz. Ela aproveita os canais de circulação da sociedade mundial, e estas foram construídos pelo desenvolvimento capitalista. A pergunta que cabe, ao mesmo tempo, é sobre o lugar para a revolta, nesse capitalismo transformado, e sobre os contornos para compor junto com ela, buscando potenciar sua força e capacidade de enfrentar a máquina não apenas mobilizados pelo medo à morte, mas também pela busca de outras formas de vida para além do capital e a destruição autoritária e domesticadora que este traz junto.

Na leitura do pós coronavírus se entrevê facilmente a expansão da China, o retrocesso da Europa, atores num mundo interligado. Mas esses poderes se organizam também em função de lógicas externas a eles, que atravessam todo, nas determinações de um mundo social onde a sociedade e o Estado desaparecem ou são funcionalizados pelo peso de formas precárias de sustento, formas concretas de usurpação do tempo de trabalho, formas cada vez mais onipresentes de criação de valor e subordinação da vida. A pandemia não interrompe mas acelera, de fato, as novas formas de lucro com vidas a merce do trabalho precário para subsistir, num deserto de indivíduos endividados, dopados, violentados pelas autoridades e, ao mesmo tempo, sem que a auto organização ou a organização social tenha condições de existir.

Pandemia na América do Sul

No nosso mundo político latinoamericano, a pandemia do coronavirus terá efeitos na política que administrará o novo capitalismo nascente. O arranjo neoliberal, produto das transformações da segunda metade do século XX, e que progressistas, conservadores e neoliberais administraram na região configurando um regime estável entre 1990 e 2010, com sinais de questionamento e crise anteriores à pandemia, será transformado.

Os trabalhadores, os precários, os invisíveis não tem hoje representação política nesse jogo de elites governantes. Mas sua força continua sendo fundamental para o andamento de tudo, como confirmamos nesses dias, na incapacidade do capitalismo de dispensar o trabalho, não apenas em termos produtivos mas também subjetivos. Cabe entender, por tanto, qual será o lugar dos setores mais vulneráveis a morrer, por depender de sistemas de saúde precários e por serem obrigados pelas condições a continuar se expondo ao vírus em transporte e habitações sobre lotadas. A direita política tem interagido e inclusive movilizado esses setores melhor que ninguém, mas estimulando um convívio violento, o descarte dos considerados fracos e, no contexto da pandemia, com uma desimplicância sacrificial.

No Chile onde existia um processo de mobilização antineoliberal em curso, a mobilização produzida pelo efeito coronavírus mostra um caráter ambíguo, ao mesmo tempo revelando uma luta compartilhada para frear uma ameaça viral, num alinhamento entre estado e sociedade momentâneo que estava pouco tempo atrás interrompido, mas também como empoderamento do Estado antes questionado, executando com seus braços autoritários o controle das cidades, garantindo, agora no mesmo sentido que os bons corações cuidadosos, o encerramento da circulação, punindo desobediência com as recomendações sanitárias transformadas em normativas estatais.

Vemos no Chile um poder estatal clássico, garante da ordem pública, aproveitando o coronavírus contra a recente mobilização, e recuperando poder de iniciativa, tanto para adiar o referendo constituinte, como para se apresentar como Estado-pai que cura, defende a saúde da população, fecha fronteiras e higieniza praças e ruas. As advertências do Agamben2, sobre a substituição do terrorismo pela pandêmia, funciona bem para entender como um estado questionado recupera credibilidade. As brigadas autônomas de saúde que cuidavam dos feridos no confronto com a polícia, na Praça da Dignidade, hoje lutam junto com as instituições estatais contra o Coronavirus, ou se desmovilizam.

Na Argentina encontramos um poder estatal dando as cartas e com a maior legitimidade possível, de mãos dadas com a oposição e fechando “la grieta” de antagonismo político que o kirchnerismo de Néstor e Cristina tinham como eixo central na sua comunicação cotidiana. O novo peronismo de Alberto Fernández, definido por ele mesmo como “progressismo liberal”, tem força política para governar, controlar, e até para errar, numa sociedade coesa pela luta contra a pandemia que está alinhada politicamente com o governo.

No Brasil a situação é completamente diferente. As atitudes do Bolsonaro o colocam no lugar do caos e o enfrentamento com o consenso coletivo anti Coronavirus. Seu papel tem sido ampliar a desordem, com irresponsabilidade e omissão que causarão mortes e que tem recebido o repúdio de situação, oposição, atores externos. No dia 26 de março, um mês depois do primeiro caso detectado oficialmente, quando se espera uma subida vertiginosa entre os casos contabilizados, a comunicação oficial lançou a campanha “Brasil não pode parar”, chamando a voltar ao trabalho, enquanto o presidente reforça a ideia de que a gripe não deve ser levada a sério, e estimula a realização de carreatas pelo país inteiro, a favor da reabertura dos comércios.

Debochado pela sociedade ilustrada, que se encontra em quarentena, Bolsonaro consegue vários objetivos, sem que os panelaços dessa sociedade urbana, ex votante do PT e outros partidos, “civilizada”, e ciente dos perigos do coronavírus o afete. Bolsonaro ocupa o centro da atenção, por um lado, e por outro consegue chegar a milhares de trabalhadores precários, desempregados, os que vivem de bicos e trabalho sem nenhum tipo de vínculo, sem capacidade de realizar quarentena e, por tanto, preocupados pela necessidade de continuar trabalhando.

Bolsonaro consegue ao mesmo tempo, se alinhando com o vírus, e não com a luta contra ele, representar a força de um capitalismo de baixo clero que fica incomodado com fechar as portas, e com uma multidão ingovernável de trabalhadores que, dado o regime de vida ao que estão submetidos, não tem o coronavírus como principal preocupação. Lopez Obrador, no México, e Ortega, na Nicarágua, exploram um papel parecido, menosprezando o risco e apostando ao misticismo.

A esquerda revolucionária se sente a vontade, nesse cenário, onde a mudança social se respira por todo lugar, mas está perdida e sem linguagem para entender e agir num mundo novo. Está em casa, também, isoladamente, com repertórios de respostas que não dialogam com o momento atual. Bolsonaro, ao contrário, interpela o trabalhador que não pode parar, de fato, e que não parou. Uma greve geral por tempo indeterminado, que em outro contexto seria um objetivo para abrir caminhos de empoderamento dos de baixo, hoje praticamente existe de fato, paralisando a escravidão do trabalho, mas mediada pela prevenção de contágio, sem orientação ou perspectivas favorável aos trabalhadores. Não é um dado menor que essa paralisação seja imposta pelos aparelhos de segurança e legislação estatal, buscando em cada lugar do território nacional que a lei seja observada. Uma paralisação total que afete setores estratégicos, encontraria hoje uma oposição inclusive de setores empresários que apóiam a luta contra o contágio. A paralisação atual tem um caráter de pausa, e não de organização distributiva ou reorganização da produção e organização econômica da vida.

No contexto da contenção da pandemia, a esquerda não tem força política para exigir medidas importantes, de cuidado frente ao vírus, de acompanhamento de pessoas infectadas, de prevenção generalizada, como seria a desmercantilização dos insumos de consumo e remédios necessários, sem privilégios e diferenciações no atendimento, sentando as bases de um sistema mais justo que seja implementado com controle de baixo e total abertura.

Se no Chile o coronavírus com sua força trouxe o fim de mobilizações, assembleias territoriais, enquanto o Estado continua perseguindo manifestantes da primeira linha com processos judiciais; na Argentina também o Estado, que se encontrava em crise pela dificuldade de controlar as variáveis econômicas, recupera sua áurea de responsabilidade, liderando com a lei na mão, aquela que todos os argentinos vão se ocupar de cumprir e fazer cumprir a seus familiares, vizinhos, e qualquer um que passe pela sua frente, em alguns casos com vigia nas janelas, ou internamente de cada um para si mesmo, sendo chamado a obedecer, talvez por um período muito longo por vir, e que será sempre prorrogado.

Colocado no lugar do desgoverno, no Brasil, a cúpula do Estado se propôs participar de uma jogada perversa, onde o colapso do sistema e o disparo das mortes os destruiria, mas uma situação mais controlada permitirá aumentar a popularidade, num comando irresponsável que dá lugar a uma crise permanente de governo e desgoverno. Este movimento joga Bolsonaro numa existência instável e lembra o daqueles milhões que, por necessidade da barriga e não como opção política, se arriscam em motos, jazidas de mineração ou trabalhos mal remunerados. Aqueles que não podem parar pelo coronavírus e inclusive enfrentam situações de assédio redobrado, não apenas para continuar trabalhando, mas também sendo obrigados a conviver em situações de risco de morte e doença na atual situação pandêmica.

Enfrentamos hoje uma emergência sanitária onde a prioridade é salvar vidas. Mas cabe perguntar, para onde vamos? Como é o novo capitalismo que nasce da destruição do anterior, ou na reorganização dos seus setores mais dinâmicos, e como se desenvolve a revolta, a luta dos de baixo e a disputa contra a mercantilização contínua de todos os espaços da vida e da morte. Na América Latina, presidentes fazem seus cálculos e jogos polarizando contra o coronavírus ou se encontrando com o corpo social contra ela. Nos dois casos cabe perguntar, qual é o lugar que ainda temos para desobedecer, inventar e construir espaços de liberdade e auto-controle da vida?

1 cf. Jason W. Moore Anthropocene or Capitalocene? Nature, History and the Crisis of Capitalism, 2016, PM Press.

2 Agamben, G.. O estado de exceção provocado por uma emergência imotivada. Disponívem em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596584-o-estado-de-excecao-provocado-por-uma-emergencia-imotivada

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