por: Juliana Meira Socióloga-jardineira. Interessada na comunicação pelo sensível, por aquilo que não está em evidência. E na conexão de desejos através de paisagens
Covid-19 no país da desigualdade
São 17:48 de uma sexta-feira. Estamos no final do verão paulistano, e mais parece o começo. Os últimos dias foram quentes. Alguma umidade se sente no ar. Os termômetros marcaram máxima de 32ºC. Tento continuar um trabalho pessoal relacionado a agroecologia e não consigo.
A palavra que atravessa meus pensamentos, de diversos modos, é aquela que, tenho certeza, é a mesma que a maioria de nós passou os últimos dias ouvindo e lendo, na tv ou na internet. É o tema das conversas com nossos amigos, com a família. E ainda que às vezes exista espaço para outros assuntos, em pouco tempo voltamos ao assunto do coronavírus da vez, covid-19.
Alteração dos protocolos do cotidiano
Seu caráter extremamente transmissível fez com que penetrasse nos âmbitos mais privados das nossas vidas, do nosso cotidiano, alterasse o funcionamento das rotinas, das receitas, do ritual do almoço, da ida ao mercado e à casa dos pais e amigos, do trabalho, dos cuidados físicos e da atenção com a saúde,… daquela para além de evitar o vírus. Assim também seu longo período de incubação colocou o toque, o contato, as relações sociais em suspeita. Tão mais suspeitas quanto próximas. Sim, nos sentimos, em menos de uma semana, extremamente cansados da overdose de instruções, procedimentos e preocupações. “Estar num grupo de risco”, “me poupar”, lembrar de quem possa também estar e oferecer ajuda. Pensar na vida e no cuidado com ela hoje, pra muita gente exigiu imaginar a própria doença como parte do efeito dominó de um vírus que veio da China, da Europa… pra cá, passando por outros lugares do mundo. Que loucura!? Logo, o ‘cuidar de si’ é atravessado pelo ‘cuidar dos outros’, ou o ‘cuidar dos outros’ passa pelo ‘cuidado comigo mesmo’. Ou seja, cuidar-se passa a ter um efeito direto na própria rede e além dela, tanto diretamente por conta da possibilidade de contágio, quanto indiretamente ao pensamos que queremos atravessar esse momento da melhor maneira possível, juntos.
Linguagem bélica: vírus como inimigo global
É curioso que muitos de nós lidamos com o vírus como se ele fosse dotado de uma intencionalidade própria e até meio maligna, avessa à vida e ao bem estar. O vírus que antes era tomado como apenas uma gripe, passa a ser um vírus da morte, ou da ‘não vida’, na medida em que caracterizamos a vida por seu movimento. A tomada de decisão do isolamento, a quarentena, paralisa o movimento intenso, o trânsito de diversidades com os quais significamos, por sua vez, o que é cidade. Todos os problemas ficam aparentemente suspensos, frente ao ‘inimigo global’.
Esse modo de, conscientemente ou não, pensar o vírus, leva a maioria de nós, incitados pela abordagem midiática e militarização das medidas de controle, a agir como se estivessemos realmente em guerra. Uma com várias batalhas. Podemos destacar algumas delas pelo modo como estão sendo narradas:
I. A assepsia
Limpeza, higiene, desinfecção é a arma. Higiene e combate em alguns momentos da história humana se aproximam de diferentes modos. No caso atual, aprendemos a lavar as mãos corretamente (ao que parece nós, pessoas comuns, nunca fizemos isso direito), a limpar a casa, as embalagens das compras e os objetos de alto contato, a manter distância enquanto falamos com os outros (antes de um, agora de dois metros), a não cumprimentar com beijos, abraços e apertos de mão, e vimos na TV a ascensão nunca antes imaginada do álcool gel, que se tornou uma espécie de super-herói contra o vírus, um tanto quanto supervalorizado em múltiplos sentidos, em relação a outros produtos e cuidados. Provavelmente as orações passaram a citá-lo: “Deus nos proteja e nos garanta álcool gel. Amém!”. Ou algo assim…, com as devidas adaptações a cada crença. Mas ele também poderia ser visto como um agente de manutenção das relações, reduzidas as necessárias. Álcool gel, o mediador. O toque tem muito a ver com esse outro âmbito do “combate”: isolamento social.
II. O distanciamento social
É tudo muito curioso, porque antes era mais simples: o capital destruindo as relações que nos impedem de ceder completamente a seu modo de organizar e movimentar o mundo, fazê-lo girar em torno a seus interesses, sua continuidade e expansão. Mas nesse caso, o próprio capital foi colocado numa zona de incerteza em relação a pandemia. Ignorar a situação seria tão terrível quanto não o fazer. Percebemos aos poucos os arranjos que elaboramos entre nossos interesses e os interesses propriamente econômicos. A reação em cadeia entre os fatos demonstra a complexidade do sistema. Muito provavelmente nesse caso, a lógica de funcionamento capitalista passaria por uma adaptação à situação de calamidade pública. Provavelmente também, as relações passariam a ser organizadas de outro modo, em outro âmbito e seriam deslocadas para ambientes de maior visibilidade, talvez até monitoradas com o aval da população para conter essa e outras epidemias. E de certo modo, permitir as mobilidades que estão relacionadas a continuidade movimentações econômicas, enquanto as relações sociais mais especificamente comunitárias, seriam miradas como perigosas. No entanto, por hora, com o que temos em mãos, podemos dizer que uma outra batalha é essa contra os encontros, contra os encontros contaminantes, contagiantes, físicos, corporais e agora febris entre nós humanos, e nosso com o microrganismo que tem na sua invisibilidade e inexpressividade imediata, as características mais preocupantes para o controle de sua disseminação.
III. Os especialistas
É interessante notar como os especialistas começaram a ganhar relevância em relação a um terceiro inimigo dos “bons cuidados” em tempos de coronavírus: as fake-news. Chamamos médicos e enfermeiros para nos ensinar a lavar as mãos, biólogos e epidemiologistas para falarem das especificidades do vírus e nos mostrar como higienizar cada coisa em cada situação, e a nos relacionar seguramente com pessoas infectadas com as quais não podemos evitar ter algum tipo de contato, gerontologistas para falar das especificidades da mortalidade entre os idosos — categoria onde estão circunscritos a grande maioria dos casos letais. Vimos matemáticos e físicos que trabalham em epidemiologia explicarem as retas e curvas nos gráficos e identificarem a fase exponencial da epidemia em cada país, e as projeções para cada cenário de tomada de decisão em diferentes momentos. E também os economistas, claro, explicarem os impactos na economia. Aos poucos nós próprios nos especializamos, junto a eles, em lidar com o inesperado e com a incerteza. Já que a cada dia há uma informação nova sobre o vírus. Coisas que só o compartilhamento de informações entre países, ou a chegada dele em um novo clima, um novo país, uma nova cultura, novos corpos e hábitos e diferentes sistemas de saúde poderiam nos mostrar. Tudo isso ganha valor e se destaca em meio a mensagens e boatos sem um emissor especificado, irresponsabilizáveis. Luta-se contra os ruídos nos protocolos que emergem no momento em que as coisas vão acontecendo. Apropriados e adaptados de outras epidemias, de outros locais.
Quero deixar claro aqui que cada um desses tópicos é de extrema necessidade e atenção: precisamos sim, tomar todos os cuidados indicados com higiene, nos isolar (fisicamente) das outras pessoas, e precisamos dos especialistas e técnicos e suas orientações. Estes nos mostrando como o vírus “funciona” ou se “comporta”, e as medidas que serão tomadas, nos dão alguma noção do que podemos fazer para nos pouparmos, para poupar outros, e no geral, alguma perspectiva de ‘como lidar’. Mas começo a duvidar se pensar nisso como uma guerra contra um vírus é a questão disso tudo. E se essa linguagem bélica que faz emergir um inimigo comum não estaria deslocando nossa atenção daqueles outros inimigos que continuarão atuando, inclusive em meio a epidemia, no modo como se posicionam ou determinam prioridades.
Desigualdade e vulnerabilidades sociais em meio a pandemia
Há algo diferente aqui, como em outros países de grande desigualdade social, antes que ‘subdesenvolvidos’. Aqui percebemos rapidamente, com a propagação do vírus, quem são esses mais vulneráveis, numa vulnerabilidade não ‘para além’ da física, mas sobreposta a ela: as famílias mais pobres, trabalhadores informais, imigrantes, aqueles sem assistência financeira, moradores de rua, aqueles que já viviam em áreas de ‘risco’ e lá continuarão, os que vivem em áreas que falta abastecimento de água por dias a fio (impossibilitando os cuidados preventivos de assepsia), e os que vivem em casas de arquitetura ‘perigosa’, agora já não apenas porque podem desabar ou serem soterradas durante a próxima chuva, mas porque não oferecem o número de cômodos, a quantidade de banheiros ou a ventilação necessária para se evitar um contágio intrafamiliar caso alguém seja/esteja infectado. Famílias que acabam tendo uma espécie de pacto de sobrevivência, que querendo ou não faz dos corpos individuais um único corpo, e se expõem juntos, pela necessidade compartilhada de manter a renda financeira do grupo. A vulnerabilidade aparece mesmo no não preparo: aqueles que não podem se prevenir de contatos futuros, através da garantia de abastecimento mínimo de mantimentos para os próximos dias, ou na falta de medicamentos, até mesmo aqueles de uso contínuo. Assim, começam a aparecer as vulnerabilidades não imaginadas, diferentes umas das outras, internas ou não aos grupos apontados como “de risco” em relação aos efeitos ou consequências desse desequilíbrio em um sistema que sabíamos, de equilíbrio instável.
Reconfiguração dos fatos: o ‘cuidado’ antes que o ‘combate’ e as decisões políticas em meio a ‘calamidade’
Por isso, acho importante não desviarmos do fato de que dentre uma série de variáveis, as tomadas de decisão dos que estão em posições de liderança (já não sei se seria certo dizer “poder”) nos governos e o modo como se articulam para desenhar uma estratégia para lidar com o que já está acontecendo, o que está por vir, e como isso afetará os mais pobres é muito mais central. Ou seja, o uso que essas pessoas e grupos fazem de um tipo de poder para tomar decisões que preconizam a saúde coletiva que neste momento atravessa a garantia de recursos financeiros para que as pessoas garantam o básico ou, do contrário, titubear a partir do papel de porta-vozes dos interesse do capital, garantindo apenas que a perda das empresas seja minimizada, são exemplos de como podemos corporificar alguns dos reais ‘inimigos’, ainda que não exponha a todos. Vide falas e ações do atual presidente nos últimos dias em relação a seriedade da situação e a medida provisória (MP 927 — rapidamente revogada) que permitia suspensão de contratos e salários dos trabalhadores nos próximos quatro meses: não pagamento e pagamento parcial, assim como demissões facilitadas, etc. Pessoalmente já vejo pessoas em minha rede familiar e de amigos sendo demitidas no momento em que entrariam em isolamento.
Um outro exemplo poderia ser o modo como autoridades lidam com a coleta de dados e divulgação de informações que são de interesse social direto. Se no início, onde tudo parece exagerado, – efeito do grau de novidade dessa situação- a resposta ao “querer saber” sobre o avanço do vírus já não é suficiente diante da realidade da subnotificação. Subnotificação que desde o começo é ao mesmo tempo problema e protocolo. Mal informar, nesse caso, é mal localizar os casos, mal planejar e adequar estratégias e mal tratar as pessoas. Resumidamente: responder mal ao que acontece. Justificados por uma insuficiência de recursos, que poderiam ter sido mobilizados muito antes da chegada (esperada) do vírus aqui. Ou priorizar a transparência apenas de informações que tem a ver com o vírus, como se nada mais fosse importante. Situação muito parecida e associada com aquela das pessoas que preferem negar o que acontece e assim acabam por não elaborar repertórios e estratégias, individuais e coletivas, para se viver de modo um pouco melhor esse momento e o futuro que estamos produzindo a partir daqui. Já que parte do que elaboramos para lidar com a situação, pode se manter no pós epidemia.
Sugiro então nos ‘cuidarmos’, aprofundar o sentido de ‘fazer diferença’. O discurso do cuidado, da atenção, da escuta e do diálogo, potentes, contra aquele outro inócuo da ‘histeria’. Não é sobre o policiamento do cumprimento de medidas pelos outros, mas pelo diálogo. Nem sobre uma solidariedade mixuruca, que se coloca do lado do julgamento moral. É mais sobre buscarmos desenvolver também um cuidado que poderíamos chamar de cognitivo, na medida em que não aceita imediatamente o modo como as informações são apresentadas, como os ambientes simbólicos e práticos estão sendo construídos e nossa percepção orientada… Ou sobre como enquadramos o relevante. Se a realidade (o que é o ‘problema’ e o que decorre como ‘soluções’) parece emergir a partir de como estabelecemos relações entre as informações, talvez também seja sobre readequá-las de modo a conferir mais peso às atitudes dos governos — boas ou não, atentas ou não às fragilidades — e de grupos locais, que já se organizam autonomamente nas áreas mais vulneráveis. E menos sobre a ‘intencionalidade destruidora’ de um vírus.