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É tempo de descobrir corpos coletivos – a circulação de covid-19 no Akai Ito, o “fio vermelho do destino”

por: Maria Morita+7

(este texto foi escrito pela prática de existência entre oito olhares em comum decisão cotidiana de permanecer em relação: é fruto de trocas de impressões, lembranças de infância e relação à distância no presente em pandemia num grupo de whatsapp entitulado “Irmãos”)

Sob o contexto da pandemia viral de covid-19 narramos esses dias que passaram e ainda não vieram; esses dias tão nossos, desse tempo que sempre será de todos os que vivem para ver e contar a pandemia. Nossos corpos irão contar e narrar sobre ela a cada dia, num cotidiano inevitável de praticar sociedade no isolamento físico, transformando o próprio corpo em um coletivo de isolamento vivo de corpos de carne e vísceras com vida. Uma narrativa vai aparecer aos poucos no texto, referência que me leva a narrar nossa prática social de isolamento físico sob aspectos que afetam meu corpo por este relato, que ativam a racialização dos povos asiáticos em território de brasis, a intolerância xenofóbica que surge na guerra semiótica trumpista de “vírus chinês” e posicionamentos que se dizem minimamente sérios, mas, ainda assim, não deixam de reproduzir velhos preconceitos do mundo ocidentalizado sobre os povos asiáticos – e, no contexto mais recente, a China.

Tem sido enorme o compartilhamento de artigos, fontes jornalísticas e posicionamentos de pensadores, intelectuais e pesquisadores das mais diversas áreas acadêmicas reconhecidas como produtoras de pensamento baseados em dados científicos, neutros, objetivos, epistemologicamente testados nos laboratórios de fazer o mundo ocidentalizado pensar sobre a China. Sobre a população chinesa, o Estado chinês, a produção industrial chinesa, a medicina chinesa e as técnicas de controle da população que supostamente estão deixando o mundo escandalizado e maravilhado, ao mesmo tempo. O antigo medo do comunismo chinês e dos autoritarismos asiáticos inventados para os inimigos racializados como amarelos no mundo dos homens brancos, aparece em sutis formulações acadêmicas (no discurso apropriado pela esquerda, também, ehin!) e nas mais escancaradas falas dos caretas mais tacanhos a gritar “chinesa porca!” para uma jovem descendente de japoneses.   

Proponho, então, uma investigação que agacha o pensamento para perceber o corpo e com o corpo atravessado por uma narrativa asiática em pinceladas de preferências que dão pistas sobre uns tipos de corpos que seremos inevitavelmente convocados a praticar em bairro de São Paulo, em bairro de Rio de Janeiro, em bairro de Belo Horizonte e Salvador, em bairro de Campo Grande e Florianópolis, em bairro de cidades do interior dos estados destas e outras capitais, em comunidade indígena nos territórios espalhados por todo um território continental de Brasil, em comunidades rurais, quilombolas e de beira mar. Muitos grupos. Espalhados grupos. Espalhados corpos. Minha intenção, hoje, é perseguir pistas que apontem para encontrar o corpo que desejamos fazer juntos para sobreviver. Fazer sobreviver corpo de gente que pode morrer pelo simples fato de ter circulado no mesmo vagão de metrô com outro corpo de gente.Quero apresentar um modo de como procurar estas pistas nos nossos corpos e com o corpo que me ensinaram a narrar como asiático, amarelo, nipônico, nikkei. 


O pensamento de cócoras  

Quando o emaranhado das minhas vísceras se teceram no útero de minha mãe, foi se embaraçando a elas um fio vermelho que sai do meu dedo mindinho. Esse fio foi encapeado em minhas vísceras como se encapeiam fios de cobre retorcidos de uma “fiação”. Minha “fiação” de veias, vísceras e músculos está emaranhada nesse fio que sai de meu dedo mindinho esquerdo e põe a minha rede de vasos sanguíneos (que passam pelo meu coração e artérias) esticada em uma variação exponencial de pontas múltiplas. Imagine a ponta dupla de um fio de cabelo. Agora imagine a quantidade de pontas conectadas com esse fio que sai de meu dedinho mindinho e se ramifica em uma ponta e mais uma e mais outra, sempre que uma existência aparece. O contrário também acontece: quando uma existência desaparece, desaparece uma ponta que faz com que o fio afrouxe. Como muitas coisas passam a existir e outras passam a deixar de existir todos os dias, o fio e todas as suas pontas mantém o equilíbrio das forças que esticam e afrouxam essa rede que conecta todas as existências com todas as existências. O nome desse fio é Akai Ito ou, traduzindo literalmente, “fio vermelho do destino”. Akai Ito é praticamente invisível, poucas criaturas vivas e não vivas, visíveis e invisíveis, humanas e não humanas são capazes de perceber a movimentação sutil e ininterrupta de todas as pontas e entrecruzamentos dessa fiação de múltiplas pontas. Akai Ito conecta em rede tudo o que se movimenta no plano das existências. Seria melhor pôr: o que passa a existir estica Akai Ito para mais uma saída amarrada à ponta dessa nova existência e, então, o que deixa de existir, na verdade, passa a engrossar de novo o fio todo a partir do ponto mesmo em que deixou de existir. Estão me acompanhando? O meu primeiro exemplo de existência (eu mesma) fala do emaranhado encapeado em minhas vísceras, uma existências com coração. Há aquelas existências sem coração (mas com espírito), cuja superfície mantém o vírus ativo por muitos dias (como as superfícies metálicas, plásticas, de madeira, etc…) Há as existências de corpos híbridos.

É muito complexa a rede Akai Ito, é um destino comum de existência a que ele nos emaranha nas vísceras. Inevitável na medida em que da prática presente, da movimentação do agora, é impossível escapar. Práticas de ancestralidades emergem no presente disposto na rede que existe a insistências desses finos fios vermelhos saindo pelos mindinhos de descendentes da rede infinita. Uma constelação se cruza com meu corpo em cada olhar e respiro de um desconhecido corpo de gente que entrou nos mesmos vagões que entrei. As consequências da movimentação de cada uma e todas as pontas que esticam, puxam, afrouxam de um lado e esticam de outro, enlaçam e modificam voltas e voltas e retorcidas que fazem com que o movimento de agora perpasse uma pessoa que eu sequer cruzei. Um exemplo para pensar como o fio do meu dedinho chega na ponta de uma pessoa que sequer conheço: a transmissão do vírus covid-19 entre corpos de coração pulsante do tipo de existência gente. Mas podemos pensar também que, por exemplo, o tipo de existência gente com quem cruzei andando na calçada da rua é atravessada pela minha movimentação a ponto de passarmos a implicar uma existência que – dali para frente – vai acompanhar essas duas gentes que se cruzam até os tempos mais distantes a partir do instante dessa conexão de aproximação, cruzamento e afastamento de corpos que caminham. A começar pelo tempo dispendido com o encontro que faz com que cruzemos ou não cruzemos todas as outras pessoas com quem vamos nos cruzar durante uma caminhada por alguns quarteirões ou muitos deles. Em 5 minutos a mais de um encontro de padaria numa cidade como São Paulo e já perdemos os instantes de nos encontrar (que seja apenas com um olhar) com uma quantidade enorme de pessoas. Também, faz parte desses 5min. de atraso a possibilidade de ter cruzado com estas e não aquelas pessoas. Há encontros duradouros, há encontros breves, intensos, graves ou pouco perceptíveis, numerosos ou com poucos corpos.

Cotidianamente há encontros dos mais variados: fortuítos, planejados, ansiados, inexistentes, impossíveis, possíveis. Na circulação dos nossos corpos pela narrativa pandêmica, há um fato inquestionável: um microorganismo de atividade viral denuncia uma conexão tão absurda quanto Aki Ito, ou seja, a conexão entre ser uma existência com coração de gente responsável pela doença que faz um outro coração de gente parar de pulsar sua existência, pelo simples fato de ter segurado a existência de metal de uma barra de metrô. A zona de vizinhança de um grupo de pontas de Akai Ito é um encontro provisório pelo tempo em que as escolhas livres continuarem a relação entre as existências que se avizinham. Um vírus que transforma essa zona de vizinhança em zona de contágio, faz com que a população global passe a ser, toda ela – agora mesmo – a minha (a sua e a nossa) vizinhança de porta. Somos mais vizinhos da China, de Cingapura, de Itália, de EUA, de Japão e de qualquer outro país quanto mais consequências de corpos infectados existirem nos encontros entre as pontas de Aki Ito. Sempre que uma existência de gente deixar de pulsar em Akai Ito, uma ponta de qualquer parte do globo pode ter sido responsável pelo encontro dela com uma atividade viral em plenas condições de adentrar as vísceras de quem encostar nas mesmas existências de metal, madeira, plástico (…).  


 O morcego originário ou o devir racializado?

Acredito que Akai Ito também seja narrativa potente o suficiente para nos perguntarmos se há como afirmar a origem da atividade atual da mutação de coronavírus. A origem é sempre narrativa e esta narrativa da origem na pulsação do coração que bombeia a existência dos animais vendidos nos mercados chineses não nos dá outro efeito senão o velho hábito de inventar origens, ainda que elas passem a existir. Vejam: não estou questionando os estudos que comprovam em maior ou menor grau a circulação do contágio do novo coronavírus entre as existências que pulsam com coração de morcegos, cobras, porcos, aves e que afetam a fiação da pulsação das pontas “gente” em Akai Ito. Apenas gostaria de apontar a necessidade de deixar essa descoberta num plano de perseguição menos importante. Afinal, importa mais o fato de que foi na China a zona de vizinhança em que o vírus foi percebido do que descobrir se – de fato – o covid-19 se originou em território chinês. Hábito de tentar controlar um caminho que seja visível de um certo sequenciamento de atividade viral, que teve um suposto início em território Chinês e aparentemente num certo mercado a céu aberto e “hábitos de higiene questionáveis”. Narrar essa origem da atividade viral na versão covid-19 é inventar o povo chinês no corpo racializado do “Perigo Amarelo” para significar os corpos da população que ocupa aquele território. Nada muito distante do interesse de construir uma narrativa que encontre eco no neoliberalismo ocidental posicionado em relação a população chinesa. Aí identificados estão os preconceitos com os hábitos alimentares, religião e modo de existir. Não é fortuíto que as manifestações de Donald Trump passem tanto pelo vocabulário empatado na expressão “vírus chinês” ou que um tipo de coração de gente que pulsa em Bolsonaro filho tenha passado a vergonha de ser respondido no twitter pela embaixada da China no Brasil. A xenofobia escancarada está em memes ruins sobre sopas de morcego e a este humor barato devemos apenas não nos deixar levar por mitos rasteiros.

Sabemos, muitos japoneses e muitos nikkeis, que em Akai Ito esse caminho é invisível e, se ele é invisível, praticar a ação de salvar vidas tem a ver com termos percebido como circula um vírus nos nossos fios invisíveis e o que devemos fazer para que os nós (ou nódulos) de Akai Ito sejam desfeitos (já que demos muitos nós nos nossos fios em aproximações e distanciamentos, em pontes aéreas ou aglomerando muitas pontas de mindinho em um mesmo salão de festas de casamento com cantoras famosas, né?). A população global deu esses nós, o vírus apenas nos faz descobrir que há existências que podem atravessar nossos fios invisíveis, presos nas vísceras de nossos mindinhos, com mais rapidez com que nossos corpos conseguem chegar da Itália em algum aeroporto brasileiro. Para nós, brasileiros, o “vírus veio da Itália”, para Trump “veio da China”, para a população da China veio do mundo invisível. A China é o território de origem da visibilidade que descobriu essa atividade viral, não do próprio vírus.

Além disso, outra formulação estanque está contagiando a vizinhança que gosta de traçar narrativas para o contexto econômico, social e governamental chinês. Algumas até preocupadas em demonstrar crítica às técnicas de controle de Estados autoritários sobre as populações e, de quebra, sair com uma formulação alinhada com um discurso anti-capitalista. Fofos. Fofos ocidentais e ocidentalizados a ver a China como grande Outro, incapaz de praticar modos libertários (e liberais) para obter uma disciplinarização de corpos contra a transmissão viral. Essa narrativa é muito sutil, nela os povos de diferentes países asiáticos têm sido classificados como os maiores controladores de população (em maior ou menor grau de capitalismo ou comunismo) e, portanto, via essa capacidade de controle sobre as massas doutrinadas encontramos uma das principais explicações para o sucesso do achatamento da curva de transmissão em casos exemplares de uma “China de Estado forte e autoritário”, uma “Coreia controladora da quantidade de corpos testados”, um “Japão de hábitos tão higiênicos perto dos porcos chineses que nem precisam de isolamento social”.

Ora, em Akai Ito, sabemos que nossa existência implica uma movimentação coletiva que, nesse momento, deve implicar uma ação social de distanciamento e isolamento físico das existências que pulsam como gente. O Japão? Se é um povo mais higiênico que o povo chinês? Não… Vocês não entenderam. Explico de novo: em Akai Ito, descobrir a circulação do vírus no território chinês, nos fez descobrir que nos tornamos vizinhos da China e da Itália e do resto do mundo, todo mundo ao mesmo tempo. Essa descoberta aconteceu no mesmo instante em que se identificou o novo coronavírus como causa da morte de uma ponta de existência que afrouxou a linha que sai puxada do meu dedinho, pois gera o mesmo efeito de morte das existências de gentes e gentes a ocupar as covas do cemitério da Vila Formosa. Akai Ito é mesmo invisível, mas a movimentação que sai do dedinho esquerdo do homem que adoeceu durante o trabalho no mercado a céu aberto de Wuhan, tensionou todas as cordas que saem de todos os nossos dedinhos esquerdos em gentes espalhadas por todo o globo. A circulação de uma existência infectada do outro lado do globo gera efeitos em como o covid-19 circula no transporte público das capitais dos estados de Brasil.                  

 Em entrevista recente publicada na Folha de S. Paulo, Achille Mbembe afirma a democratização do poder de matar. E isso não significa que há uma democratização na possibilidade de permanecer vivo, via direito de acesso irrestrito e universal aos aparelhos de saúde. O filósofo camaronês, define e formula a existência da necropolítica: a prática que age para ter poder de aniquilar existências via técnicas e narrativas que exterminam pessoas racializadas nas colônias, por exemplo. Com o poder político da morte, do apagamento da existência de uma gente e grupos inteiros de gentes, no contexto de uma pandemia, Mbembe observa a potência da circulação de um vírus em que o poder necropolítico está implicado na minha movimentação pelo metrô na semana retrasada como responsável pela morte das vítimas fatais desta semana. 

Agachando bem para pensar, minhas vísceras não são capazes de narrar a explicação de, na China, o achatamento da curva se dar como um dos casos asiáticos exemplares na contenção da transmissão de corpo para corpo. Mas esta existência sabe que, no Japão, Akai Ito é uma narrativa antiga, tão antiga quanto os povos indígenas do território de Hokkaido, do território de Okynawa (antigos reinos independentes). Nos territórios como estes, muitos povos considerados como minorias étnicas nipônicas não têm os mesmos direitos de saneamento e acesso à saúde como nas províncias em que estão os centros financeiros e produtivos como Tóquio, Hamamatsu ou Shizuoka. Akai Ito é modo de existir sem possibilidade de cair na ilusão de ter como escapar do destino comum de nos transformarmos entre nós que existimos em tudo e tudo o que existe em nós. Inevitável destino presente de, tão simplesmente, ser nós todos enquanto somos existências concomitantes. Akai Ito é prova narrativa de que uns corpos se sabem coletivos, vizinhos, conectados em fiação de ininterrupto movimento, esticamento e afrouxamento. Com um vírus como o covid-19, fica evidente em Akai Ito o quão é fácil perder o controle do efeito de uma simples ação como a de apertar as mãos em cumprimento, abraçar, beijar e, até mesmo, segurar o mesmo objeto. O contato físico do toque é uma vibração de encontro muito intensa em Akai Ito. Cada vez mais intensa fica, na medida em que os encontros perduram e os graus de intimidade fazem avançar ações de proximidade física. A permanência da nossa rede de existências destinadas no mesmo fio vermelho depende, agora, de distanciamento físico como prática de ser comunidade. Há narrativas transmitidas na zona de vizinhança de Wuhan, onde se descobriu a potência da atual vizinhança global. Meu agachamento não saberia perceber que transmissão de narrativa está por trás da capacidade técnica de oferecer testes para a imensa maioria da população, como em Taiwan, Coreia, Cingapura, Vietnã, Hong Kong e outras zonas de vizinhança asiáticas. Afinal, são povos tão diferentes e que se transmitem narrativas de corpos coletivos em outras tantas possibilidades e deuses e entidades e mundos invisíveis que nos cercam.

No atravessamento da narrativa de Akai Ito que me faz entender a implicação da ação desse corpo como ação coletiva, percebo o surtir do efeito de controle da transmissão do vírus entre um povo como o povo japonês como um inevitável modo de agir para quem vive sem muito segredo uma existência coletiva com as pedras e insetos do quintal; os prédios, asfaltos e túneis de metrô da cidade. Em Akai Ito consigo explicar até uma noção básica do contato físico entre pessoas no Japão: cumprimentar se curvando é uma atitude de respeito com o corpo da outra existência, afinal, é prudente confiar o contato físico de intensidade na fiação e emaranhado de relações de Akai Ito àqueles de maior intimidade e com maior grau de conhecimento do seu corpo. Essa escolha de avançar o grau de contato físico deve ser autônoma e livre escolha de modo de relacionar e conectar a intensidade do fio que sai do meu mindinho ao fio que sai do mindinho de outra existência de gente. Não consigo conceber a possibilidade de definir, assim, os motivos que levam esse efeito ser produzido, aos olhos do Ocidente, em toda a Ásia. Mas gostaria de arriscar um chute.

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Continuo agachada para chutar que meus irmãos e irmãs produzidos como existência racializada amarela, em diferentes cantos de diferentes territórios asiáticos, transmitem narrativas para existências segundo certo modo de existir que se percebe como uns corpos coletivos circulantes entre um “sempre nós”. Algumas vozes nas sociedades europeias, norte-americanas, entre outros territórios ocidentalizados, se narram espantadas, maravilhadas e, até mesmo, críticas, sobre a capacidade dos Estados asiáticos de controle de transmissão viral diretamente ligadas à capacidade de controle de um Estado forte sobre a população. Como se fossem Estados capazes de controlar a população praticamente incapaz de não se render ao controle de dados na internet, sendo facilmente domesticados a ponto de um aplicativo avisar um cidadão de Wuhan que seu vagão de metrô tem potencial de circulação ativa de covid-19. De fato, são irreproduzíveis determinados comportamentos de populações asiáticas em países europeus ou aqui no Brasil. Não nego que a fonte de dados coletados nas redes sociais se transforma, nesses contextos, em técnicas de controle populacional. Mas contra esse controle e formas de fugir dele, cabe ao europeu intelectual não querer que as populações da China se entreguem às suas críticas caretas ou que seja reconhecido por ser mais um que critica Estados totalitários com destreza.

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Com todo o respeito: acabar com o neoliberalismo colonial (ou o colonialismo neoliberal?) tá bem na ordem do dia para existências intelectuais de países que não pararam as linhas de produção, com número de casos de infectados suficiente para qualquer outro país asiático ter – pelo menos – interrompido o chão de fábrica ou organizado um rodízio de funcionários para evitar aglomerações. Lutar contra totalitarismos asiáticos já é a luta do povo amarelo racializado como minoria étnica por seus próprios conflitos internos de unificação territorial em China, Japão, Coreia do Sul, Cingapura, Vietnã (…).        

Enquanto sobrevivemos a nós mesmos no período de quarentena, entregamos conteúdo para os processadores de dados e afetos em todo o compartilhamento de textos e posts que fizemos enquanto torcemos acompanhando o BBB20, maratonamos séries nos sites de streaming, publicamos stories no instagram no nosso cotidiano entediado e conectado às redes: consumindo clicks, likes, visualizações, textões e #tbts. A proposta do modo de ação de meu corpo, ontem virou postagem e mensagem nas minhas redes e se transforma nas postagens e mensagens nas redes sociais de quem me distancio fisicamente. Esses dados processados são vendidos para quem lucra com o nosso consumo e vai capturar nossos corpos e subjetividades nesse momento de isolamento físico. Nossos dados serão como pedra de toque para continuar no controle de narrativas sobre eu, você, nós, a Ásia, a Europa e o que os EUA tem a ver com isso. Se há espanto no modo de controlar a população via dados coletados na internet por Estados asiáticos, também me espanta a ocidentalidade achar tão grave que “na China o governo controla as pessoas por aplicativos” sem se ligar que no Ocidente sairemos dessa consumindo tudo o que desejamos em tempos de punhetagem na quarentena.

Para finalizar o chute – lembrando que a diversidade interna da população que ocupa o território chinês tem, certamente, ferramentas e modos de resistir tensionadores da transcendência com a qual lidam no Estado que os quer representar -, gostaria de apontar no modo de controle de governamentabilidade na China, um modo de perceber a própria ação coletiva (presente em narrativas de se perceber em uns corpos coletivos) e que, talvez, tenha muito mais a ver com uma tentativa de controle da não percepção (e falta de noção real e visível) do alcance das movimentações coletivas a partir da circulação de apenas uma existência viva. Um modo de perceber a vulnerabilidade da rede de existência coletiva que se implica o tempo todo em efeitos que podem ser incontroláveis nas nossas ações. Desconfio que haja, na transmissão das narrativas asiáticas, a transmissão de uma noção corpórea que se preocupa com a circulação coletiva de existências que afetam outras existências. Uma preocupação não apenas para com a própria zona de vizinhança (portanto da própria zona de contágio), mas que, ao transformar a própria zona de vizinhança em zona de contágio, sabe que pode fazer zonas de contágio acontecerem do outro lado do globo e, ser assim, imediatamente vizinho dela. Akai Ito é invisível, não podemos enxergar. A preocupação com a origem num discurso científico, apenas produz um efeito visível de um sequenciamento cuja origem só se torna visível como invenção; pois o vírus poderia ter sido visível em mortes por pneumonia em qualquer parte do mundo cujas causas de insuficiência respiratória ficaram sem maiores explicações. Se covid-19 foi percebido circulando em nossa rede de gentes pela primeira vez na China, não significa que lá surgiu.

Akai Ito é uma prova narrativa de que meu dedo mindinho está diretamente ligado ao dedo mindinho de quem circulava no transporte público de Milão no mês passado, nas ruas de Hanoy em Fevereiro, nos trens para Hamamatsu no meio de janeiro ou no metrô de Wuhan em dezembro. Ou, não me espantaria, num morcego ocidental carregando um vírus desconhecido no meio do ano passado (ou retrasado, não importa)… Mas isso seria invenção minha. 

foto: obra da artista japonesa Chiharu Shiota