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Nos limites do mundo

por: Camila Jourdan, professora de filosofia na UERJ e autora de “2013 – memórias e resistências”, ed. circuito, rio de janeiro, 2018.

Não há dúvida de que vivemos uma situação-limite. Ela é limite, primeiro, porque aponta para uma fronteira entre a sobrevivência e a morte, ela é limite porque, depois dela, tudo está em questão e o que valia antes, deixa de valer. Não sabemos o que ocorrerá depois dela, sabemos que nada mais será como antes. Vasta é a literatura filosófica que aponta para a oportunidade ética de situações-limites: elas nos permitem criar valores porque não é possível julgá-las sobre o esteio do que já estava estabelecido; elas não se fundam no que estava dado e, portanto, encarnam uma singularidade diante da qual é possível dizer o que realmente importa. O fundamental da situação-limite é justamente seu caráter sem precedência, não há um padrão, um modelo dado de valores simplesmente a serem aplicados, algo totalmente novo e, ao mesmo tempo, com valor de necessidade, então, pode surgir.

Chamo situações-limite àquelas em que me encontro sempre que não posso viver sem luta nem dor, em que inevitavelmente assumo a culpa e em que tenho de morrer. Não se transformam, ou transformam-se apenas na sua aparência, sendo, em relação ao Dasein, definitivas. Não são previsíveis; enquanto Dasein nada mais vemos por detrás delas. São como uma parede que enfrentamos e na qual fracassamos. Não podem ser por nós alteradas, chegando-se apenas à clareza sem a qual não explicamos nem deduzimos outra coisa. Elas são com o próprio Dasein.” (Karl Jaspers, Philosophie)

1. Os limites da família tradicional: o que experienciamos nos últimos dias é como a família nuclear tradicional é incapaz de fornecer o suporte de que precisamos em uma situação de emergência. Fechados em lares nada seguros assistimos a violência contra os mais vulneráveis e a exploração das mulheres aumentarem. Fato é que a família patriarcal não nos fornece uma experiência de solidariedade e ajuda mútua primária nuclear, como se propaga. Ao contrário, ela é fonte de injustiças; violências e silenciamentos.

2. Os limites do individualismo: nunca a televisão brasileira falou tanto em coletividade! De repente, atomizados por imposição nos lembramos que nunca fomos átomos. Subitamente, a presença de um vírus ameaçador nos leva a lembrar que temos uma vivência comum, que partilhamos um mundo, que nossa imunidade também depende da imunidade do outro, que habitamos um mesmo ambiente que agora nos é evidente ao mesmo tempo que retirado. O que o outro faz pode afetar a nossa vida ou morte. A liberdade liberal é uma evidente mentira quando uma situação realmente séria é estabelecida, ela é uma liberdade negativa. Aliás, ninguém permanece liberal quando o navio começa a afundar.

3. Os limites do mercado e do capital: a fábula liberal de que o capital cuida de si como uma força mágica autorreferente é suspensa em toda crise na qual os mais árduos defensores do livre mercado clamam pela intervenção do Estado e convocam cada indivíduo ao sacrifício. Diante de uma situação de emergência, o Estado de bem-estar social, esta outra fábula, parece ressurgir da tumba que o neoliberalismo havia lhe colocado. Fato é que, quando realmente precisamos uns dos outros, os cânones do capitalismo não se sustentam porque o capital não é e nunca foi capaz de cuidar de si mesmo. O capital é individualista e autoritário. É então necessário fazer valer a vida em detrimento do Mercado e do trabalho. Não!, grita o momento presente, sua vida não é equivalente à economia. Essa mentira suja se faz cada vez mais clara: de um lado está o Mercado, de outro está nossa sobrevivência.

4. Os limites do Estado: mas se é pelo Estado que se clama, parece ser para que este estabeleça um princípio do comum, o que ele não é de fato capaz de expressar. O que fizeram os Estados e seus representantes nos últimos dias? Aquilo que foram criados para fazer: disputas e espetáculo. Não só falham e tardam no estabelecimento de medidas necessárias à nossa sobrevivência, como criam novos problemas totalmente desnecessários. É até repetitivo citar aqui o governo norte-americano saqueando máscaras de países pobres e entregando para empresas privadas. Parecem que podem matar um vírus com o exército quando a primeira medida que lhes ocorre é chamar a força nacional. Rapidamente são estabelecidas mais e mais medidas para rastrear as pessoas e restringir liberdades, enquanto os subsídios mínimos são postergados ou negados. Discursos contraditórios; brigas internas visando eleições; informações escondidas; agressões mútuas inter e entre estatais. Não pense que este é o fato mas que não precisaria ser assim, não há Estado que não funcione pela lógica da manutenção do seu próprio poder sobre outros Estados e sobre o seu povo. Sua lógica não é a da comunidade, mas da preservação da sua própria identidade. O Estado, um grande indivíduo, não a expressão dos limites do individualismo liberal. Estados não pensam sobre como salvar vidas, pensam sobre como salvar a si mesmos e seus interesses econômicos.

 

O que fazer quando toda uma forma de vida nos aparece como uma evidente mentira? É porque nossa forma de vida sempre foi uma mentira que nossa vida agora surge como totalmente sem forma. Não é possível perder o necessário a menos que ele jamais estivesse lá. O advento do ser-sem-mundo não é responsabilidade de um vírus, mas de uma maneira de viver que não se sustenta por si mesma. A produção-consumo desenfreada e com aparente vida própria na qual embarcamos mata, destrói, nos tira as condições mais básicas de nossa existência. Se não fosse o vírus, seria outra mazela ou uma alegada catástrofe “natural”. A carência de mundo é própria à dinâmica alienante do capital. Tudo que é produzido e reproduzido, nesta sociedade, comporta-se, afinal, como um vírus: sem vida própria, mas induzindo a vida à reproduzi-lo como se dependesse dele. De fato, não é apenas o vírus, são inúmeras as mazelas. A questão é se ainda há tempo de criar um mundo novo. Se ainda resta um comum a ser construído para além do Estado, do Mercado, da família e do indivíduo. Todas essas entidades, que se pretenderam substanciais, regidas pelo princípio da identidade, se mostraram uma farsa, totalmente incapazes de dar conta da nossa comunidade, de nossa mediação fundamental. Por elas, acabamos por perder o mundo. Há agora apenas uma sombra do que podemos vir a ser. Resta saber se ainda poderemos aproveitar a possibilidade ética de uma situação-limite. Pois, se o momento presente faz surgir com clareza o que é farsa, também pode atestar a concretude das verdades manifestas que nenhuma fake news pode subtrair, os momentos de vida ou morte são reveladores sobre o necessário: a importância da produção de conhecimento coletivo; da saúde universal e gratuita; das condições mínimas de sobrevivência que um dia animaram o estabelecimento de direitos universais. O que resistirá de pé neste limite?

“O sentido do mundo deve estar fora dele. No mundo, tudo é como é e tudo acontece como acontece; não há nele nenhum valor – e se houvesse, não teria nenhum valor. Se há um valor que tenha valor, deve estar fora de todo acontecer e ser-assim. Pois todo acontecer e ser-assim é casual. O que o faz não casual não pode estar no mundo; do contrário, seria algo, por sua vez, casual. Deve estar fora do mundo.” (Wittgenstein, TLP, 6.41)

Na mais árdua mazela as pessoas reencontram formas de vivências solidárias e cuidados coletivos imprevistos, não aquelas cristãs e humanistas, abstratas e caridosas, mas aquelas afetivas, concretas, que nos lembram qual vida queremos viver, o que nos constitui, o que tomamos como necessário. Perdidos, sem mundo, podemos reconfigurar seus limites, podemos operar mudanças fundamentais. Para além das telas, mas tornando, em alguns casos, essas que agora se interpõem em todas as esferas das relações como ferramentas, são inúmeras neste momento as redes de apoio mútuo que surgem ocupando o lugar do comum que a forma-Estado não é capaz de suprir. Pequenos grupos cooperativos, autogeridos e descentralizados que se mostram muito mais eficazes do que as alternativas institucionais para dar conta do momento presente.

Aqueles que sempre estiveram na exceção, que já viviam diante da emergência, que precisavam se arriscar e estiveram diante das prisões, são capazes de organizar focos de resistência no mundo todo. É preciso atentar para essas redes silenciosas e para o que tal experiência ainda pode nos legar no âmbito das possibilidades abertas.