Conversações Febris – 04 de junho de 2020 – 19hs.
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Mais um grupo de zap lotado de mensagens não lidas, outra página no facebook pra seguir, caixa de emails com 987 msgs não lidas, notificação de reunião agendada, duas lives imperdíveis no mesmo horário, recomendação de leitura enviada no grupo do trabalho, panela de pressão apitando, o meme sem graça enviado pelo colega, ninguém comentou a mensagem da convocatória do sindicato, celular sem espaço na memória, apagar rapidamente 2573 fotos, filha pede socorro pra entrar na sala virtual com a professora, impossivel abril o powerpoint enviado pelo chefe com as tarefas da semana. Nos solicitam para curtir, compartilhar, subir uma hashtag, assinar mais uma petição, ter uma opinião sobre a última polêmica, estar disponível, entrar em um novo grupo, nos mobilizar. Mais um jovem negro morto pela polícia, outra medida de precarização dos direitos aprovada pelo governo sem qualquer protesto, hoje 1048 mortos em decorrência do covid-19, uma reunião ministerial que nos faz entrever com assombro a transparência do funcionamento do poder.
Tudo na mesma tela, na mesma superfície, no mesmo ambiente, a mesma topografia, com a mesma velocidade.
“Não posso respirar!”
A circulação da imagem de George Floyd, como um contra-feitiço, disparou uma onda inesperada de revolta nos EUA. Os corpos pretos são sensores de um mundo que não pode mais se sustentar, enunciam os caminhos de uma ciência de retomada e nos revelam a verdade da guerra em curso. “Não posso respirar” também contém as formas do possível, as imaginações de liberdade produzidas pela revolta contra os comandos do provável.
Contagiosamente vivos.
Saturação, esgotamento, asfixia. O que significa poder respirar?
Neste momento, desejamos experimentar e investigar entre todxs uma dobra intensiva no percurso de habitar uma forma coletiva de pesquisa diante dessas muitas impossibilidades do encontro. Como, nessa condição de isolamento e de crescente mediação tecnológica, fabricar e sustentar novas alianças, inteligência e ação coletiva? Quais características (linguagens, sensibilidades, infraestruturas) devem estar presentes para sustentar uma conversação que é também um modo de conhecer?
Foi preciso aguardar alguns dias após nosso último encontro para enviar uma nova mensagem. Criar um breve silêncio, desaturar, fazer vazar, deixar o corpo vibrar um pouco mais com as palavras, as mensagens, a revolta e todos os acontecimentos da semana.
Como Laboratório de experimentação (ontoepistêmica e política) a Zona de Contágio vai adquirindo novos adensamentos e nos interpela sobre como seguir a investigação. Realizamos 3 encontros virtuais, criamos zonas de confluência entre linhas de investigação (ciência dos dispositivos e ciência de retomadas), compartilhamos produções, literaturas e começamos a estabelecer um vocabulário e sentidos compartilhados. Neste percurso um pequeno coletivo de pessoas, afetadas por questões intensificadas pelo acontecimento Covid-19 começou a fabricar novas alianças. Um “laboratório do comum” é inseparável da comunidade política transitória que emerge em torno de problemas comuns e das estratégias de luta que esses problemas provocam:
1) Regimes de conhecimento (as disputas em relação à ciência, os saberes menores e não autorizados, as ontoepistemologias dos saberes das lutas, corpos como sensores);
2) Regimes de poder que atualizam formas de controle; Biopoder-Biopolítica, dispositivos (novas formas de mobilização e desempenho, tecnologias de gênero e racializadoras/racistas, a relação entre a casa, o corpo, o prazer e a produção);
3) Regimes tecnopolíticos e tecnoestéticos (a complexidade tecnosomática; dataficação, algoritmização da vida e novos modos de extração e trabalho; alteração nos modos de associação, desejos e individuações tecnomediadas);
4) Transição societal e os limites do capitaloceno/plantationoceno/antropoceno (terra e o mundo vivo, relação entre viventes; extrativismo ampliado e formas cosmopolíticas de luta).
Essas dimensões dão forma a um amplo programa de investigação que atravessa de diferentes formas as motivações e desejos dos praticantes do Laboratório Zona de Contágio. Com a experiência desta breve trajetória, sentimos que o momento nos convida a uma nova dobra que contribua para intensificarmos as conversações entre nós. Isso nos leva, imediatamente, a pensar sobre as próprias condições exigidas para essa investigação: um problema relativo ao desenho do laboratório.
Em diversos espaços da vida, o isolamento físico e a crescente mediação das tecnologias de comunicação digital, radicalizaram uma mutação em curso. Há uma crise generalizada das formas de representação: nas dinâmicas de produção do real e verdadeiro; nas instituições das democracias representativas. Seja no âmbito no trabalho, em nossos coletivos políticos, nos espaços de ação institucional e familiar, sentimos um esgotamento da capacidade de produzir conhecimentos coletivos e sentidos compartilhados sobre o que nos passa e nos acontece. A própria arquitetura dos ambientes digitais nos agencia a emitir continuamente mais uma explicação, mais uma opinião, mais uma tomada de posição. Conversações implicadas, cumplicidades do pensamento e conspirações são mais raras. Estamos saturados de informações que produzem impotência, infelicidade e desorganização, bloqueiam a possibilidade da experiência, de sermos afetados pelo mundo.
Com uma Ciência de retomada, deslocamo-nos do representacionismo para uma política experimental. A Zona de Contágio nasce nessa encruzilhada que não separa o modo de conhecer dos modos de existência que desejamos fazer prosperar. Um laboratório é também um lugar onde se fabricam coisas. No primeiro encontro esboçamos o problema de um possível protótipo: um dispositivo de pesquisa coletiva, um arranjo para uma conversação em tempos de pandemia, como sustentar e fazer reverberar uma prática? Como produzir um encontro entre corpos e pensamentos, desejos, intuições diante de um terreno esgotado, cansado e de poros obstruídos? Como produzir espaços para o ritmo, o contra-tempo em um mundo cada vez mais cibertecnomediado?
Este meta-problema de investigação (desenho do laboratório) é um problema análogo àquele vivido em diferentes espaços da vida social (nos coletivos de trabalhadores, nas organizações sociais, em grupos ativistas etc). A crise de presença e a erosão das formas de vida em comum que agora sentimos de maneira radical é apenas um sintoma mais agudo do um modo de vida neoliberal que já vivíamos.
Assim, imaginamos que uma boa maneira de experimentarmos a construção deste protótipo seria pensarmos sobre quais são as perguntas que nos implicam com aquele conjunto de problemas enunciados acima em 4 grandes eixos. Pensar sobre novas perguntas que nos interessam é também realizar uma cartografia-investigativa do Comum entre nós. Um percurso de investigação situada em nossa experiência contemporânea tecnomediada pode nos ajudar a compreender um pouco mais sobre as condições de emergência de novas subjetivações políticas e novas individuações coletivas, a começar pela própria Zona de Contágio.
Próximo encontro: Conversações Febris – 04 de junho de 2020 – 19hs.
Para esse ciclo sugerimos alguns textos inspiradores
Partilhas sensíveis e essenciais em tempos pandêmicos [ou quando poderemos novamente ir ao teatro sem medo?], de Marina Guzzo: https://n-1edicoes.org/062
“Voltar a nos entediar é a última aventura possível”: Amador Fernadez-Savater entrevista Franco Berardi, Bifo: https://vaporaovento.blogspot.com/2018/10/voltar-nos-entediar-e-ultima-aventura.html
Economia psíquica dos algoritmos e laboratório de plataforma: mercado, ciência e modulação do comportamento. Fernanda Glória Bruno, Anna Carolina Franco Bentes, Paulo Faltay (PDF)
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/download/33095/19357
O direito universal à respiração de Achille Mbembe: https://n-1edicoes.org/020
“Das guerras travadas contra o vivo, pode-se dizer que seu traço fundamental terá sido o de tirar o fólego”-Achile Mbembe, “O direito universal à respiração”
A etimologia da palavra “ansiedade” é diversa. Conta a história da nosologia que o termo foi introduzido nas clínicas psi de língua inglesa pela tradução do termo “angústia” (“angst”) para “ansiedade”. A palavra “angústia” vem do termo anguere, “apertar”, “sufocar”. A raiz *angh- vem do proto-Indo-Europeu, e tem o significado de “apertado, dolorosamente constrito”.
Essa etimologia nos aponta um sintoma comum de picos de ansiedade: a dificuldade de respirar. Esse conjunto de sintomas inclui hiperventilação, aperto no peito, falta de ar ou sensação de asfixia, tensão muscular, palpitações, fraqueza, tontura, e instabilidade, náuseas, e fraco, tonto ou instável, irritabilidade, inquietude, e sensação de estar “no limite”. Em um ataque de pânico, os corpos interpretam essa reação como uma falha catastrófica de seu funcionamento, sinalizando perigo iminente ou morte.
Na boca do sujeito em ataque de pânico, “eu não posso respirar”. Na boca de Eric Garner, “eu não posso respirar”. Na boca de George Floyd, “eu não posso respirar”. Na boca dos pacientes com COVID-19, “eu não posso respirar”. Murilo Duarte Costa Corrêa:”I can’t breath é o lema de todos os corpos parasitados. É também o lema de todos os corpos precários, tratados como excedentes biológicos pela necropolítica global do capitalismo financeiro e suas próteses governamentais na gestão da pandemia do Covid-19″ (https://n-1edicoes.org/076).
Ainda outra asfixia, anterior: O ano passado bateu recordes de focos de queimadas em março e abril, com 3.383 e 1.702 focos, respectivamente. Em 2020, houve uma desaceleração de cerca de 50% no mês de março, com registro de “apenas” 1.641 focos. Apesar da redução, o número ainda está acima da média histórica para o período. Em abril, até o dia 22, o monitoramento havia registrado 595 focos. Caem as queimadas, cresce o desmatamento, e o resultado continua sendo a asfixia planetária.
Achile Mbembe: “Antes desse vírus, a humanidade já estava ameaçada de asfixia. Se houver guerra, portanto, ela não será contra um vírus em particular, mas contra tudo o que condena a maior parte da humanidade à cessação prematura da respiração, tudo o que ataca sobretudo as vias respiratórias, tudo que, durante a longa duração do capitalismo, terá reservado a segmentos de populações ou raças inteiras, submetidas a respiração difícil e ofegante, uma vida penosa” (https://n-1edicoes.org/020).
Essa dimensão respiratória da subjetivação capitalista forma, me parece, uma dimensão da ansiedade como dispositivo de controle.
(“I can’t breathe”) – Tatiana Nascimento
um suspiro que atravesse
a pandemia, a distância,
o medo, o trauma,
o pânico ancestral do
pretocídio en tor nan do
nossos nomes em bandeiras
hasteadas como Eguns que mais
não dançam, nem bendizem, só vão
embora
emb…
ê!
pretidão
pretidão acesa
preditão acesa que eles
tentam / apagar/am / (m)eu peito
tem uma chama igualmente es
cura y brilhante que bebe
ar no que ilumina
essa noite
de lua rindo
frouxo eu
aqueço
uma vela
y acendo mais
um pouco o
sonho
de que olhos
tão pretos vivam
em paz caminhem
em paz fumem um
em paz sonhem
em paz comam
em paz amem
demais
y durmam
tranquiles…
(nossa paz
é que eles
extermina)
y
só
dissipem
quando for na
sagrada hora do Orun
(que aqui a
lei de branco,
profana sempre,
quer roubar o ar
que Oyá nos
concedeu
divina). https://palavrapreta.wordpress.com/2020/05/29/i-cant-breath/
Muito prazer,
Só agora entrei em contato com a zona de contágio. Gostaria muito de saber quando será o próximo encontro. Também estou colocando em ação um laboratório, o Meteoro cujo tema central é o Mito da razão ocidental.
Sou professora da UERJ.
Talvez já na próxima semana inauguraremos encontros virtuais para conversar sobre o tema, investiga-lo. Gostaria de poder convidá-los.
Forte Abraço
Izabela
Olá Izabela. Vamos adicionar seu email à nossa lista para seguir a conversa. Seja bem vinda!
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