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o dia que roubei comida

#relatosfebris

A quarentena foi decretada em São Paulo há algumas poucas semanas, mas continuei trabalhando como entregador de bicicleta através dos aplicativos. Meu único vínculo é o cadastro de inscrição nos apps. Não se reconhece o vínculo trabalhista, celetista ou qualquer outra coisa. Sou uma espécie de trabalhador autônomo, mas sem autonomia. Precisei continuar trabalhando para ter uma renda enquanto o auxílio emergencial ainda era uma discussão entre os políticos.

Mas, o primeiro domingo de abril, foi meu último dia de trabalho. Na última entrega, da última noite em que trabalhei como entregador (até então não havia decidido parar de trabalhar por conta da pandemia), eu estava na calçada de um restaurante. Esse é um local comum aos entregadores, fora do restaurante. Daquelas regras não ditas, mas que ficam explícitas na fala dos atendentes: “espera lá fora que eu já levo o pedido para você”. Com a desculpa de dar mais agilidade e melhorar a circulação, criaram portinhas que já dão para a calçada, para entregarem comida. Mas que, para mim, são as portas que separam onde é o espaço dos clientes e dos trabalhadores.

Este local comum dos trabalhadores, a calçada, é um lugar de troca de experiências. Por volta das 23 horas, eu e outros três motoboys conversávamos sobre trabalho, em frente a um restaurante japonês. O assunto era a piora do trabalho na pandemia. Sobre a diminuição dos valores pagos e a mudança no perfil dos pedidos. 

Com medo de saírem às ruas, as pessoas passaram a fazer mais pedidos de compras em mercados. Realizar compras nos mercados não é vantajoso para o entregador. São pedidos demorados, já que o trabalhador tem que procurar no  mercado pelo pão de forma, integral, com mais de 12 grãos, sem casca da marca azul, não a vermelha! Essa procura é sempre demorada. Fora uma série de outros contratempos que esse tipo de pedido traz. O valor do produto na prateleira diverge do valor no app, o produto está esgotado naquele mercado, achei o produto, mas cadê a etiqueta com o preço? Filas, erros nos aplicativos, demora de processamento, são tantos problemas que já aconteceram…tempo de vida!

Todos reclamavam sobre esses tipos de pedidos. Os clientes passaram a pedir muitos produtos nos mercados. O que antes eram alguns produtos pontuais, viraram compras grandes. Relatei a eles sobre o tempo que perdi para sair de um pedido, pois o cliente havia pedido 20 litros de água pelo aplicativo. Nem um motoboy conseguiria carregar aquilo, muito menos eu, de bike.

Outros comentários que surgiram na conversa eram reclamações sobre como havia decaído o valor pago aos entregadores nos últimos dias. Um deles queixou-se que estava na rua desde às 10 horas da manhã e ainda não havia ganhado R$100. Mostrava-se descontente porque antes recebia o dobro do valor em um dia inteiro de trabalho.  Outro motoqueiro, com o celular na mão, concordou e disse que estava quase na mesma. Falou que estava na rua desde o meio dia e acabara de bater os R$100 do dia. Virou e mostrou a tela do celular para que todos vissem.

Imagem retirada de um grupo de entregadores do Facebook. O print foi um bug que zerava as corridas e que ocorreu meses após o relato do texto.

O primeiro motoboy que já havia reclamado dos valores se exaltou com a demora do pedido e foi cobrar o atendente do restaurante. Perguntou, incisivamente, se seu pedido já estava pronto. Ele estava há 40 minutos esperando. Era seu último pedido, queria ir para casa descansar depois de um dia difícil. Contudo, o atendente conseguiu acalmá-lo. Falou que o pedido estava em preparo e pediu para aguardar. Mesmo contrariado, decidiu aguardar mais um pouco. Não que tivesse muita escolha, pois sair de um pedido é arriscado. Recusar pedidos pode causar bloqueio no app o que significa ficar sem emprego. Trabalhador autônomo sem autonomia.

Lembrei que nessa mesma semana, já na “quarentena”, estava pedalando até um restaurante por uma rua mal iluminada que termina em uma extensa avenida bem movimentada. Na esquina, duas viaturas da polícia estacionadas. Paravam alguns carros, motos e bikes (eu) “aleatoriamente”. Não que os policiais tenham sido mal-educados ou violentos comigo. Mas, é o tipo de coisa que irrita. Pois, claramente eu estava trabalhando. Nas costas, carregava uma mochila enorme, característica de entregadores, com o logo da empresa estampado, com uma cor gritante. Entretanto, sei que não foi a cor da mochila que chamou a atenção deles para me pararem.

Meu pedido ficou pronto antes. Não vi o desenrolar da história do motoboy que já estava impaciente. Peguei as várias caixas do pedido, coloquei na mochila e fui embora. Passava das 23 horas e queria chegar logo em casa. Terminar o último pedido e descansar.

Contudo, pedalando pela noite, seguindo o GPS, também sentia raiva. Comecei a pensar sobre aquela conversa, aquela semana, a pandemia, o trabalho, etc..

Era um acúmulo, um esgotamento da estrutura do trabalho através dessas plataformas. Das condições trabalhistas já conhecidas por muitos. Da posição social dos entregadores, descartáveis para muitos. As classes mais abastadas recolhem-se dentro de seus apartamentos, longe do vírus, enquanto nós temos que continuar na rua trabalhando. Eles não conseguem abrir mão de comer pizza, hambúrguer, sushi, sei lá. Querem comer, mas não estão dispostos a se arriscar nas ruas em meio a uma pandemia. Deixem que outros se exponham no lugar. 

E a gota d’água era a desconfiança que aquela última entrega era para alguém que não estava cumprindo o isolamento social. Era muita comida para apenas uma pessoa. Na minha mochila havia comida para umas seis pessoas. Uma família grande, talvez? Nunca tive a confirmação de fato. Mas entregar mais de R$200 de comida, enquanto dois trabalhadores não tinham ganhado nem R$100 trabalhando o dia inteiro, para um casal branco, de classe média, risonho, que provavelmente não estavam cumprindo a quarentena. Foi o empurrão para que eu roubasse alguma comida daquela entrega.

Desde quando comecei a trabalhar um dos assuntos recorrentes na nossa calçada são formas de pegar o pedido para si. Existem várias formas de pegar a entrega para si e comê-la. Varia de aplicativo para aplicativo e das condições de cada pedido. Na fila de espera, na calçada, é comum alguém falar que está esperando ali para levar o pedido para casa e outro comenta que já fez isso, mas de outra forma. Um terceiro trabalhador complementa com mais uma outra técnica para comer a encomenda do cliente. Enfim, existem muitas formas que os entregadores encontraram para explorar as vulnerabilidades dos aplicativos. E essas práticas são compartilhadas entre nós.

Não que seja grande coisa, pegar uma parte do pedido para mim não é nada. Mas, naquela noite, me senti bem. Era o que eu queria. Desejava que todos eles se fodessem. Queria dar prejuízo ao aplicativo, ao restaurante, aos clientes.

Não sei qual foi o desfecho da história. Se reclamaram com o restaurante, com o aplicativo ou deixaram por isso mesmo e comeram o resto do banquete. Mas, sei que aquele shimeji pareceu mais saboroso naquele dia.

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