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EAD: Use o celular! Mas saiba escondê-lo…

Foto: Vitor Ian

por: Leticia Rolim

Na sala de aula os smartphones já estão presentes há alguns anos. Conectados ao fone de ouvido, tocando o funk “estorado” dos alunos que te olham com cara de paisagem enquanto te escutam; gravando a sua aula de modo incriminativo, como em muitos casos da onda Escola Sem Partido, ou tirando uma selfie localizada na “Escola Estadual com Nome De Algum Militar Que Quase Ninguém Sabe Quem Foi”. Muitas funções, muitas informações.

Agora os smartphones são as ferramentas principais para que as aulas continuem acontecendo em meio à pandemia de covid-19. A ordem “Guarda o celular!” se contradiz, e agora é através dele que nos comunicamos, quando o plano EAD (Ensino à Distância) dá certo para os alunos das escolas estaduais de São Paulo. E é sobre o funcionamento de algumas delas que consigo falar hoje, ou sobre como estamos nós, professores, lidando com a experiência de um ensino à distância. Então, de onde surgiu esse tal aplicativo, Centro de Mídias, com o qual trabalhamos hoje? Teria alguma relação com as câmeras do Escola Sem Partido?

App Mano e Escola sem Partido

Mês passado soubemos por meio da matéria feita pela The Intercept Brasil qual empresa é responsável pelo aplicativo Centro de Mídias com o qual trabalhamos desde o início da suspensão das aulas presenciais. Em 2018, a empresa IP.TV foi responsável pela criação de um app de streaming chamado Mano, usado para abrigar vídeos e notícias falsas da campanha de Jair Bolsonaro na época, conteúdo comumente vetado pelas redes sociais mais populares. O app teve Flávio Bolsonaro como garoto-propaganda, estimulando a migração das redes sociais mais comuns para ele, e ainda hoje os alunos do Amazonas, Pará e Piauí têm acesso ao canal “TV Bolsonaro”, ao mesmo tempo em que acessam os canais da rede pública de ensino. O app Centro de Mídias foi doado pela empresa IP.TV e recebe dados de cerca de 3,5 milhões de alunos, além dos dados de todos os professores e demais funcionários da equipe pedagógica das escolas estaduais paulistas*. Coincidências.

O movimento Escola Sem Partido, por sua vez, se deu a partir da acusação de doutrinação político-ideológica dos professores para com os alunos. Agora, as “escolas sem partido” têm como ferramenta principal de trabalho um aplicativo que tem como base o Mano, app desenvolvido em 2018, época de campanha, em parceria com Jair Bolsonaro. A empresa desenvolvedora tem hoje acesso a todos os dados inseridos nesse app educacional: materiais didáticos, atividades, aulas gravadas, videoconferências, chats e o que mais acontecer dentro e fora do aplicativo Centro de Mídias (galeria de fotos, microfone do celular, dentre outros).  Mais uma vez a ideia de “partido”, seja como “tomar partido”, seja como partido político, é seletiva: pretensamente neutra, a Escola Sem Partido não se mantém muito longe da “tomada de partido” quando seleciona discursos que devem ser usados (TV Bolsonaro, para alguns estados brasileiros) e outros a serem descartados e até proibidos. Enquanto presencialmente há a distância no espaço da sala, com as técnicas da escola, entre professor e aluno, entre corpo e mente, pelo bem da imparcialidade e da transmissão de saberes isentos… no EAD, quão distantes estamos agora, comparado ao que tínhamos presencialmente?

bell hooks e a pedagogia libertadora em um ensino à distância

bell hooks fala de uma pedagogia libertadora que nos faz sair dos limites de nosso corpo, da divisão corpo e mente, sair da crença de que se faz necessário não romper a linha de fronteira entre a escrivaninha do professor e a extensão da sala de aula, onde não se pensa com o corpo, o corpo que fica de pé, que gesticula, que fala com o corpo e a mente. “A noção tradicional de estar numa sala de aula é a de um professor atrás de uma escrivaninha ou em pé em frente à classe, imobilizado”*.

A pedagogia libertadora põe o corpo para frente da escrivaninha, para o meio da sala, onde se vê que ali também há um corpo como o dos alunos, também há opiniões e gostos pessoais, cheiros, roupas, gestos. Como a pedagogia pode ser libertadora num ensino à distância?

O aluno pede desculpas por não conseguir acessar as lições que você posta na plataforma Google, lhe pede ajuda, e você o ajuda da maneira que pode, pelo seu whatsapp pessoal, por exemplo. Os professores se desdobram para montar videoaulas, “textos-aulas”, realizar videoconferências com os poucos alunos que participam. Alguns professores são avisados de que é preciso elaborar somente atividades escritas, pois alguns alunos estão indo à escola buscar as atividades impressas toda semana – não há comunicação por celulares ou computadores. A troca de saberes acontece quando você sabe que seus alunos estão ali minimamente (agora do outro lado da rede) lendo, ouvindo e entendendo o que você quer dizer. Mas será que a mensagem que enviamos está chegando?

Agora rompemos mais uma vez as fronteiras, e a pedagogia é arremessada num espaço cibernético onde coincidências e desrespeitos à privacidade acontecem sem que se dê muita importância. Onde doações são feitas a um custo: doa-se um app, se ganha uma quantidade enorme de dados que podem ser utilizados tanto numa estratégia governamental quanto numa estratégia de lucro.

A educação de plataforma não vê mais corpo, não vê limites entre privado e público, já que agora mal temos como opção passar ou não o número de telefone pessoal pra mandar uma mensagem no “zap” e tentar encontrar seu aluno prestes a desistir da escola, por exemplo. O áudio do “zap” vira uma mini aula (“Mas pode falar se você não entendeu a atividade, tá? Eu mando outro áudio!”) para alguns; as mensagens dos alunos chegam a qualquer hora do dia (ou da noite), aquele grupo de whatsapp parado virou o grupo da sala do 1º ano, onde só quem fala é professor, e os alunos não aguentam mais tanta atividade.

A educação de plataforma não vê mais corpo, não vê limites entre pessoal e profissional, não vê limites de espaço e tempo, esquece dualismos para se colocar ali: no meio de todas as informações processadas em uma velocidade que não acompanha o nosso próprio ritmo de pensamento e raciocínio, nem dos alunos, nem dos professores.

Ainda, sobre raciocínio: qual a didaticidade existente em escrever textos para que os alunos consigam ler e fazer as atividades com base nesse “texto-aula”? No máximo, textos que imitem a sua própria fala em sala de aula, com gírias, com memes, sem se importar tanto com as regras gramaticais. Mas, e quando a dificuldade de leitura é mais forte? E quando é difícil se concentrar em casa? Pesquisar a resposta daquela pergunta de alternativa no Google soa ainda mais tentador à distância…

Isso tudo quando há o acesso: muitos alunos ao menos conseguem acessar o tal aplicativo, porque não têm celular em casa, porque estão usando a internet do vizinho e ela não “pega” bem, porque o celular que “pega” em casa é do pai ou da mãe, e eles trabalham o dia todo e precisam do celular para sair para o trabalho. Tantas reportagens sobre como tem sido a educação à distância para o ensino privado em contraposição ao ensino público, e enquanto no primeiro há até maior engajamento, eu me pergunto: quais os incentivos reais para continuar estudando, estando no ensino público e vivenciando situações como as que citei ali em cima? Vivendo os problemas já enfrentados em meio às técnicas escolares clássicas, presenciais, disciplinares, excludentes, agora potencializados pela tecnologia digital.

Há algumas semanas fizemos reuniões com algumas turmas de alunos, depois de um “Conselho” improvisado (“fulano fez a lição? “não”, “não também”, “não fez”, “ok, vou tentar contato com ele. Ciclano…?”), em busca de animá-los, de não deixar que desistam, de encontrá-los e saber o porquê do sumiço, de não fazerem as atividades, de mal acessarem o tal app do governo. No geral, a maioria dos participantes das reuniões eram professores. Os alunos iam entrando na videoconferência aos poucos. Somente alguns alunos participavam, mas muitos eram já bem participativos nas aulas presenciais. A nota de participação também envolve questões de acesso à internet, celular, tv, e outras técnicas pagas, principalmente agora.

Boatos que uma sala do 3º ano do Médio combinou entre si de reprovar em conjunto: uma professora comentou que é como se eles se incentivassem a não fazer as lições, mesmo tendo acesso normal às plataformas de ensino. 3º ano do Ensino Médio, poucos alunos restantes na turma, porque muitos provavelmente já desistiram antes de qualquer tecnologia digital virar ferramenta principal de estudo. Como reanimar?

Todos os dias os grupos de Whatsapp dos professores são bombardeados por mensagens de “Bom dia”. Seria uma forma sutil de assinar o ponto ou de só desejar um bom dia mesmo? Já fiquei na dúvida e mandei “bom dia” algumas vezes, mas agora sei que existem formas ainda mais sutis de contar presença: nossos coordenadores nos avisaram dos relatórios de presença baseados na quantidade de “logins” às plataformas de ensino, Google Classroom, app Centro de Mídias, entre outros. Os professores que não estão acessando as plataformas são notificados, e precisam acessar as plataformas para que não fiquem com faltas.

Quanto menor é, mais nocivo pode ser

Quanto menor é, mais nocivo pode ser. “Eles são, tanto política quanto materialmente – difíceis de ver. Eles têm a ver com a consciência – ou com sua simulação”*. Os tais “chips de silício”, os smartphones, ocupam a função de base de trabalho agora: relatam nossa frequência, determinam nosso salário; facilitam ou dificultam o acesso dos estudantes ao aprendizado, inclui alguns, exclui ainda melhor outros; quebra barreiras entre a tal vida pessoal e a vida profissional, o privado e o público, o espaço e o tempo, de trabalho e de lazer; gera desânimo, desistências, afastamentos entre o aluno e o professor; por fim, dão lucro e alimentam muito bem bancos de dados de algumas empresas de tecnologia, como a que criou o app Mano, base para o atual Centro de Mídias paulista.

Ao fazer a troca de ambiente técnico, não mais a escrivaninha, a lousa, o giz e o apagador, mas o smartphone e o computador, a internet, a mediação: como seria possível realizar uma pedagogia libertadora numa era de ciborgues?

Libertadora para a professora/professor, resguardando sua liberdade de expressão, prevenindo a seletividade dos movimentos “Sem Partido”; libertadora para o aluno, que se apropria do conhecimento, que tem voz ativa e crítica frente ao conteúdo que aprende, que entende o funcionamento das práticas educativas tanto online quanto presencialmente.

Os smartphones já estão aqui, ao nosso lado. Os ciborgues já estão aqui há algum tempo. Agora, o aperfeiçoamento é nítido: as técnicas de controle se afunilam, a liberdade de expressão é ainda menor, a mediação torna-se um caminho quase sem volta quando se pensa num mundo pós-pandemia. Como formar uma unidade de resistência, professores e alunos, frente a essas novas técnicas de controle?

É. Agora preciso responder aos meus alunos.

Leticia Rolim

Referências

*https://theintercept.com/2020/06/15/app-empresa-tv-bolsonaro-aulas-online-pandemia/

*HOOKS, bell. “Ensinando a transgredir: A educação como prática da liberdade”. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. – 2 ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.

*HARAWAY, Donna. “Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano – O Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. Organização e tradução Tomaz Tadeu – 2. ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009 – (Mimo).