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partir d/a casa

por: bru pereira

vou começar com um compromisso que acho que tem sido importante entre a gente na zona de contágio: me situar de onde falo [e, sabemos, se situar é muito menos sobre os lugares da enunciação que sobre ser capaz de formular rotas de fuga de um lugar que se está para um outro lugar (possível) e depois para outro e então outro e assim por diante…].

esses últimos dias foram foda e foram foda exatamente porque comi bronha. eu vi o caldo entornando e não dei muita bola e quando dei por mim e olhei pro caldeirão, uma sujeira que só. [tenho uma amiga que diz ficar espantada em como a gente se assusta com o que já estava batendo na porta e que a gente ignorava como se fosse testemunha de jeová no sábado de manhã… ela diz que fica ainda mais espantada em como a gente se habitua tão facilmente, depois que deixamos ele entrar, em passar um cafezinho para ele tomar enquanto fica com as pernas pro ar diante da televisão (às vezes até servimos um pão de queijo junto)].

enfim, marquei bobeira e o leite entornou. e as avós já disseram, a minha pelo menos vive dizendo, “não adianta chorar pelo leite derramado”, mas a gente chora, né não? [ainda mais hoje em dia em que tudo custa um olho da cara.] e a gente chora e se desespera, porque além de chorar pelo leite derramado, a gente tem que esfregar o fogão com bombril e veja multiuso. e é choro, desespero e cheiro de produto de limpeza [é curioso que produto de limpeza não fica mais caro, né? talvez os donos dos preços saibam que hoje em dia tem muito caldo entornando em fogão por aí…], mas também tem raiva ali no meio: “quem de vós nunca esfregastes com raiva um bombril na superfície de um fogão sujo de leite derramado que atires a primeira pedra” [deyse, capítulo 5, versículo 24].

é na raiva que quero focar. sabe, acredito muito na audre lorde quando ela diz que nós, ou algumas de nós, não sei, temos que aprender a fazer um bom uso da raiva como estratégia de sobrevivência e como modo de lidar com esse susto que a gente chama de modernidade. mas a raiva também ajuda a gente a retomar um pouco a pretensão de saber apontar com clareza [a raiva é, sem dúvidas, fogo que ilumina (e que também queima, tomara!)] quem são nossos inimigos, e peço licença para poder ser pretensiosa em dizer que eu achei um inimigo — porque é isso: o leite derramou e se é pra situar o que eu falo, vieram sim o desespero e a raiva, mas também veio certa amargura, este é um texto de pessoa amargurada [com raiva e amargurada]. meu inimigo aqui é a domesticidade, que calhou de ser o tema que iremos conversar sobre no nosso próximo encontro. por isso achei que talvez fosse interessante compartilhar isso com vocês.

mas para tentar sair uma pouco das desgraceiras pessoais, deixa eu entrar num modo mais acadêmica para tentar, pelo menos, falar das desgraceiras com referências bibliográficas. às vezes ajuda, né? [eu ainda tenho esperanças que um dia o lattes vai ter lá para gente preencher “desgraceiras em andamento” e “desgraceiras concluídas”.]

a domesticidade tem me acompanhado já há algum tempo. na etnologia indígena esse operador esfera doméstica::esfera pública organiza muita coisa e aparece de diferentes formas: consaguinidade::afinidade, interior::exterior, trabalho produtivo::trabalho reprodutivo, lógica da convivialidade::lógica da guerra, chefe::xamã, menstruação feminina::menstruação masculina e, de suma importância para mim, mulheres::homens. mas não quaisquer variações de mulheres::homens e, sim, a forma específica que esse par assume quando encapsulado pelas ficções ora biológicas, ora marxistas, ora estruturalistas, ora caretas, da “complementariedade sexual”. [uma vez na catequese nos explicaram da naturalidade divina (sabe se lá deyse o que é ser natural e divino ao mesmo tempo) do “amor entre um homem e uma mulher” falando de plugues e tomadas que se encaixam perfeitamente e fazem os eletrodomésticos funcionarem… rsrsrs…]

digo que a complementariedade sexual [mulheres::homens] me é de suma importância, pois foi o que tentei imaginar através de outros imaginários (imaginários oriundos das próprias filosofias ameríndias que haviam sido descritas nesses termos) durante a escrita da dirce de mestrado. ali foi meu primeiro enfrentamento acadêmico contra a empreitada doméstica.

peço licença de novo para me desdizer, me desdizer não, mas para voltar atrás um pouco, para quando disse que ia falar de desgraceira com referência bibliográfica, mas preciso falar rapidinho de uma desgraceira com referência biográfica. toda criança que cresceu criança-viada, ou quase toda criança-crescida-criança-viada, teve que, em algum momento, declarar guerra à família-casa-domesticidade: é questão de sobrevivência. digo isso porque algumas crianças-viadas-já-viradas-adultas viram travesti escrevendo uma dirce de mestrado e precisam novamente declarar guerra à família-casa-domesticidade. e isso não acaba, a gente tem que declarar guerra contra a domesticidade toda hora que o leite derrama. e isso tudo, é pra por em perspectiva que minha encrenca com a domesticidade (e com a complementariedade sexual) é teórica sim, cheia de bibliografia, mas também tem uns traços biográficos bem grifados com marcador cor-de-rosa.

mas essa duplicidade bibliográfica-biográfica novamente me faz pensar em compromissos. e quero compartilhar com vocês um compromisso e um xaxo que levei ao falar dele.

o compromisso era cheio de boas intenções — porém, como também dizem as avós, “de boas intenções o caminho pro inferno tá cheio”—, e consistia em me dizer decolonial, ou que minha guerra contra a domesticidade era mais próxima da guerra tupinambá do que de uma “guerra de superpotências” [isso da guerra eu inventei agora, para dar drama e caricatura ao que preciso dizer]. mas era assim mesmo: eu dizia decolonialidade como quem diz “sapatênis é cafona”.

até que um dia, uma gata babadeira me disse, depois de eu dizer “sapatênis é cafona” despreocupadamente em público: “gozado que a sra fala de decolonialidade aqui, decolonialidade ali, mas a única coisa que você fez foi usar guattari para criticar deleuze para falar sobre gênero”. e emendou: “garota, afirma o compromisso, mas aprende a sustentar ele”. e garotas, imaginem como eu fiquei? o leite tinha derramado.

[só para não gerar nenhum equívoco, pois às vezes nós, gentes da universidade, entendemos as coisas tudo errado, então precisamos explicar direitinho. a gata não estava fazendo uma “censura” à leitura de guattari, deleuze ou quem quer que fosse. ela estava me interpelando sobre um compromisso que eu mesma me coloquei, mas não sustentei, pois compromisso é um tantinho enunciação e um tantão caminhada, de qualquer outro jeito, não funciona. nem adianta tentar.]

mas então vamos ao compromisso que queria compartilhar [e que compartilho como uma forma de recompactuá-lo comigo mesma, porque vira-e-mexe eu o esqueço, e por isso o caldo vive entornando sem eu perceber]: eu assumi como compromisso bibliográfico-biográfico que não há como, porque não há como mesmo, pensar a domesticidade sem pensar a colonialidade e a ferida colonial.

e isso por dois motivos:

  • a domesticidade é uma invenção colonial. a gente conta umas histórias estranhas sobre a domesticidade e esquece de contar como a domesticidade enquanto dispositivo foi elaborado, implementado, ajustado nas colônias. a ann laura stoller é quem melhor me contou essa história quando ela escreveu que foucault não tinha percebido que o dispositivo da sexualidade foi primeiro testado nas colônias, e depois implementado na metrópole. mbembe fala isso quando fala do virilismo dos homens brancos colonizadores e sua fantasia de um orgasmo total, um tremor do sentidos que precisa que o outro seja eliminado da cena do gozo.  andrea smith descreve como a ocupação colonial, nos estados unidos, se assentou, entre tantas outras coisas, na heteronorma. oyèrónkẹ oyěwùmí fala de como os discursos coloniais de gênero, assentados na ideia de domesticidade/família nuclear, foram mobilizados pelas administrações coloniais para poder gerir os corpos yorubá. ou quando sebastián calfuqueo fala da retomada de uma relação com as águas-territórios mapuche enquanto uma aprendizagem de feitura de um corpo-território não binário, contra-colonial e contra-extrativista. ou ainda, quando geñi nuñez faz seus textos no instagram explicando sobre a colonização dos afetos. enfim, tem muita gente falando sobre isso, mas eu vivo esquecendo. por isso, digo de novo: a domesticidade é uma invenção colonial. e o mais curioso é que o esquecimento é próprio de seu projeto. eu tendo a pensar que não há tecnologia mais eficaz que a casa em sequestrar a presença. a casa é uma grande máquina de fazer a gente se desimplicar dos problemas com sua suposta ruptura higiênica com o lado de fora (preciado chamou isso de sonho doméstico). por isso parece tão difícil falar do que acontece dentro de casa. por isso também boto muita fé na contra-tecnologia feminista do “pessoal é político” como forma de enfretamento ao sequestro doméstico dos problemas. [a arte também tem produzido formas de percepção do problema da casa-colônia. cito aqui rosana paulino e adriana varejão.] esse ponto, do esquecimento abrigado pelas casas, é essencial para o segundo motivo.
  • a ferida colonial ainda dói. essa frase vem de duas artistas, jota mombaça e grada kilomba, que têm se dedicado a pensar o trauma da colonização. é preciso saber se haver, elas dizem, com nossa quarta ferida narcísica ou já é a quinta? perdi as contas… de qualquer modo, tem uma ferida que a gente esquece que está aí, mesmo a gente habitando ela todos os dias, dias e noites, às vezes mais à noite que de dia. e na pandemia a gente teve que arrancar umas casquinhas dessa ferida que ainda dói. tenho duas coisas para dizer sobre isso: uma diz respeito a casa como ferida colonial que se instalou e ainda dói, e a segunda, sobre o porquê se haver com ela é um compromisso necessário para com a vida

a) no começo do isolamento social que é um confinamento doméstico, um coletivo do qual faço parte começou a receber bastante relatos da guerra que as famílias fazem com pessoas lgbt. fizemos até uma pesquisa para produzir dados sobre os impactos da covid-19 em pessoas lgbt. mas pensar em termos de ferida colonial essas situações talvez seja importante. amara moira, helena vieira, ave terrena, castiel vitorino, todas elas têm tentado recontar as diferentes figurações de como essa ferida foi criada e mantida doendo. a amara, por exemplo, retoma o crime colonial da sodomia para pensar como as famílias foram colocadas contra suas crianças-viadas. ela conta como que no ordenamento jurídico da colônia, o pecado nefando era considerado um crime de lesa majestade, isto é, dar o cu era tão grave quanto atentar contra a vida do rei e a pessoa denunciada, se não morta, tinha seus bens confiscados e era deixada para viver como pária. e a família desses sujeitos também assumia a pena, ainda mais se ela não denunciasse aquele ou aquela que no seu seio era dada a “inverter” a naturalidade das práticas [a fazer gambiarras com os plugues e tomadas, para usar o idioma do meu catequista]. a família precisou se constituir como uma figura vigilante dos corpos de seus membros. a família teve que declarar guerra contra alguns desses membros. e o mais louco, trabalhando às vezes com adolescentes lgbts expulsos de casa, às vezes com pais de pessoas lgbt tentando lidar com suas crianças-viadas, o quanto essa ferida ainda tá em carne viva. o quanto ela continua sendo cutucada mesmo quando estamos lidando, por exemplo, com pais que aceitam suas crianças-viadas. infelizmente os 500 anos dessa guerra nos desensinaram a como não causar feridas nas nossa crianças-viadas [e que criança não é uma criança-viada? acho que até freud já disse isso.] a gente produz feridas mesmo quando não quer, por isso é importante assumir elas. assumir, como compromisso, que a domesticidade é uma ferida colonial

b) mas assumir a ferida colonial é também um compromisso com a vida. principalmente com a vida daquelas que têm de sentir com mais intensidade e frequência a dor dessas feridas. vou copiar aqui uma citação da grada kilomba, pois ela colocou de um jeito incontornável o problema do esquecimento.

Vejo muito a história colonial como um fantasma que vem e nos assombra, e assombra-nos porque não foi tratado de forma digna. As coisas não foram chamadas pelos seus próprios nomes, não houve um funeral digno, não há um nome que apareça nos livros no lugar certo. A história é mal contada, é contada ao contrário, e os personagens não têm um nome, uma data, um espaço. E por nunca ter sido tratada, a ferida colonial dói sempre, por vezes infeta, e outras vezes sangra. E quando sangra, nós ficámos aflitos e não sabemos porquê. Acredito que a literatura e a arte podem dar ferramentas e linguagem às novas gerações para tratar essa ferida, para colocar as coisas nos sítios certos e saber quem é quem e o que fez e porquê.

quando a gente esquece, a gente não sabe nem como tratar das nossas feridas [a castiel vitorino tem um trabalho muito bonito sobre esquecimento (colonial) como uma forma de adoecimento — se chama “lembrar daquilo que esqueci”]. e ainda pior, quando certos sujeitos se permitem a desimplicação como estratégia de não reconhecimento da ferida colonial, o que eles fazem é fazer com que o presente daquelas para quem a ferida anda sangrando, se torne um problema do passado.

de repente, o presente é vivido como se fosse o passado e o passado coincide com o presente. O racismo e o sexismo e todas as formas de opressão fazem isso, colocam-me num passado que não faz parte do presente mas passa a fazer parte da minha vida presente. Esse desfasamento do tempo faz parte do trauma e faz precisamente porque o colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada.

um outro nome para esse esquecimento, e que lembro aqui pois acho que é um dos conceitos mais importantes para o nosso enfrentamento da colonialidade-racismo, é pacto narcísico da branquitude, formulado por cida bento. sem desfazer esse pacto, eu diria ser quase impossível nos haver com as nossas feridas coloniais, tanto as que nos doem quanto as que a gente faz doer nos outros

domesti|cidade

já que eu comecei a falar das desgraceiras tudo, queria pedir licença para contar mais uma desgraceira que me angústia quando eu tô nesses momentos raivosos e necessitada de repactuar minha guerra contra a domesticidade. o paul preciado tem um livro muito bonito chamado pornotopia, em que ele apresenta um estudo da pornografia, da arquitetura e da domesticidade a partir de uma investigação sobre hugh hefner e a mansão da playboy. nas páginas do preciado, a gente descobre que o projeto pornográfico-arquitetônico de hefner é uma guerra contra a domesticidade. na década de 1950 ele monta um dispositivo elaborado para permitir que homens de meia-idade [meia-idade é uma noção que ainda faz sentido?] e divorciados que, por conta da pensão, das cobranças do trabalho e dos filhos que teve com a ex-esposa, se sentiam ainda muito domésticos. a playboy [tanto a revista, quando a mansão] era, portanto, a esperança de uma heterossexualidade livre do espaço doméstico. e já no comecinho do livro, preciado transcreve uma fala de hefner sobre seu projeto:

Eu queria uma casa dos sonhos. Um lugar onde fosse possível trabalhar e também se divertir, sem os problemas e conflitos do mundo exterior. Um ambiente que um homem poderia controlar por conta própria. Lá seria possível transformar a noite em dia, assistir a um filme à meia-noite e pedir jantar ao meio-dia, comparecer a compromissos de trabalho no meio da noite e ter encontros românticos à tarde. Seria um refúgio e um santuário … Enquanto o resto do mundo estivesse fora do meu controle, na Mansão Playboy tudo estaria perfeito. Esse era o meu plano. Fui criado em um ambiente muito repressivo e conformista, então eu queria criar meu próprio universo, onde me sentisse livre para viver e amar de uma forma que a maioria das pessoas dificilmente ousaria sonhar.

sei que quando a gente tá meio emputecida e com raiva, toda pouca coisa pode virar muita coisa se não nos vigiamos [as crente que diz assim, né? “vigia, irmã”.] mas é angustiante como hefner elabora um discurso contra a domesticidade que tem um monte de palavra que facilmente teria saído da minha boca. mas é mais angustiante ainda sentir que ele criou um projeto político para a feitura de uma heterossexualidade não doméstica/da. e nessa feitura a revista foi o de menos. preciado defende que o dispositivo pornográfico tinha muito pouco a ver com a nudez feminina comercializada. [é claro que ter uma foto da marilyn moroe com os peitos de fora, em cores, na década de 1950, comprada numa banca de jornal, foi uma grande novidade. mas de fato, a playboy sempre pode prescindir da nudez, tanto que desde 2015, ela não mais veicula imagens de mulheres nuas em seus números.] o dispositivo pornográfico foi um grande rearranjo na arquitetura e nas infraestruturas do desejo, do sexo, da reprodução e etc. a mansão da playboy, definida por hefner como uma disneylândia para adultos e por preciado como heterolândia, foi um dos maiores golpes que a arquitetura doméstica norteamericana sofreu. e o projeto não parou por aí: a mansão era uma realidade para um milionário como hefner, não para o homem comum; para os homens recém divorciados ou aqueles ainda libertos da domesticidade (os bachelors) foram propostas coisas como a Playboy’s bachelor’s penthouse apartment, em 1956 [que acompanhou uma série de TV, Playboy’s Penthouse, de 1959], e a Playboy Town House, em 1962. ambos os projetos da arquitetura playboy eram centrados em derrubar as paredes do quarto do casal, lugar do confisco legítimo da heterossexualidade doméstica, e fazer de todo o apartamento/casa um lugar de sexualidade latente [nas plantas arquitetônicas desses projetos é visível como a entrada já dá direto no quarto do bachelor — vou deixar umas fotinhos abaixo —, enquanto no contexto da heterossexualidade doméstica o quarto do casal fica trancado, longe dos olhos das visitas e dos demais membros da casa que não o casal.]

[é claro que os homens domésticos/ados também fantasiavam sobre a liberdade da domesticidade, mas só algumas décadas depois, em 1990, surgem os projetos das man caves (também chamadas de manland, manctuary rsrsrs), espaços dentro da casa que permitiam aos homens habitar um fora da casa. e o lugar de formulação da importância desses espaços foi a psicologia evolutiva e a sociobiologia tornada ciência pop, com a publicação de livros como homens são de marte, mulheres são de vênus.] [é nesse período também que há um boom no consumo de viagra e de adesivos de testosterona por homens cis, e o termo grooming passou a ser usado para falar em práticas de cuidado estético por homens. essas são algumas outras curiosidades sobre as reconfigurações infraestruturais da masculinidade.]

enfim, o projeto pornográfico-arquitetônico de hefner não reformula apenas as fantasias do espaço doméstico, mas reconfigura a vida urbana. foi também nas páginas da playboy que surgiu o conceito de kitchenless kitchen, uma cozinha que não é projetada para o uso. o que fez com que o bachelor se tornasse extremamente dependente do take-out [conceito primeiramente associado à alimentação de trabalhadores pobres que tinham que comer a caminho do trabalho] e do delivery [conceito primeiramente associado às noites em família nos subúrbios em que a housewife tirava folga da tarefa de cozinhar para o marido e filhos]. [apenas umas décadas depois, com a emergência da cultura dos celebrity chef, é que os homens que cozinham vão se tornar parte do sonho americano.]

mas houve, naquele período, outros projetos de críticas da domesticidade — e que também reformulavam a ocupação da cidade, no contexto norte-americano —, que permitem desorbitar a angústia de parecer ter os mesmos objetivos que hefner, ou de que eles foram os únicos. vale lembrar a publicação da mística feminina, da betty friedan, que fala sobre a exaustão física e mental causada nas mulheres cis pelo espaço doméstico. mas vou continuar falando dos homens cis e, majoritariamente, brancos.

as décadas de 1940 e 1950 também foram importantes para o surgimento dos primeiros guetos gays em cidades como nova iorque e são francisco. a constituição de certos espaços urbanos como sendo espaços onde a homossexualidade masculina pudesse ser vivida de maneira livre foi permeada por um espírito crítico em relação à domesticidade. foram os soldados recém retornados da guerra que passaram a formular uma recusa da domesticidade como única alternativa para se viver abertamente a própria sexualidade. e é maluco imaginar que foi experiências sexuais com colegas do batalhão durante a guerra [e depois também durante a guerra no vietnã], que levou alguns homens (que vão passar a adotar o termo gay) a declararem uma guerra contra a casa para constituírem um modo de vida gay bom de ser vivido. nesse período, as saunas, as boates, os parques, os banheiros públicos como os novos espaços disponíveis para o exercício da sexualidade [masculina] se constituem como um desafio para a vida doméstica. [sei que três ou quatro décadas depois, com a pandemia de hiv/aids, os homens gays passam a “redomesticar” sua sexualidade como estratégia de sobrevivência, assim como a ação direta, o bash back, se torna prática de enfrentamento dos ativismos que cobravam respostas mais efetivas do poder público à “crise da aids” e ao aumento gigantesco nos casos de violência homofóbica.]

a guetificação das dissidências sexuais e de gênero também vieram acompanhadas de maior repressão policial. a década de 1960 foi marcada pelas invasões e perseguições de policiais e também foi um momento de crise imobiliária que atingiu de maneira intensa as pessoas mais subalternizadas do “gueto gay”, notadamente pessoas dissidentes de gênero. é nesse contexto que acontecem as revoltas de stonnewall, que são claramente uma resposta à repressão policial, mas também à falta de moradia. [a gente esqueceu que as origens do gay pride também foram as lutas por moradia de sylvia rivera, marsha p. johnson e stormé delarverie.]

s.t.a.r. — street transvestite action revolutionaries —, grupo criado por rivera e johson ocupou uma casa abandonada e a transformou em refúgio para outras pessoas lgbt expulsas da vida doméstica. isso foi na década de 1970, em 1972 para ser mais exata. nessa mesma época, um fotográfo preto e gay norteamericano [bem, ele se relacionava com homens e mulheres, mas ele publicamente preferia ser identificado como gay, era um compromisso dele], alvin baltrop, começa a fotografar a ocupação erótica das ruínas da crise imobiliária nova iorquina. explorando como as ruínas do urbanismo [a região dos piers abandonados, que ele costumava fotografar, tinha ficado relativamente isolada por conta de um desmoronamento de parte de uma highway] eram espaços de ocupação de corpos fugidos da domesticidade. nas fotos, a gente vê homens gays tomando sol, conversando, flertando, trepando, ocupando os espaços do abandono da domesti|cidade. eles próprios, muitas vezes, abandonados pela domesti|cidade.

[deixo também algumas das fotos dele para vocês verem, elas são muito bonitas.]

nessa última foto, baltrop registra gordon matta-clark em meio as ruínas de algum edifício. matta-clark também costumava frequentar a região dos piers como parte de suas investigações sobre a arquitetura das ruínas. [matta-clark era um boy hétero, seu interesse nos piers era pelo abandono/descuido da arquitetura daquele território.]  ele foi um dos fundadores do coletivo de anarquitetos, uma gente interessada em investigar os vazios, as ruínas, os espaços abandonados, o que foi deixado para traz pela domesti|cidade. mas parte da pesquisa de matta-clark também era sobre a sustentação, sobre o que sustenta os edifícios. sobre o que mantém eles de pé. sobre o quão longe a desconstrução pode ir sem tornar inabitável um espaço. [e quando a gente entra em guerra é importante investigar essas coisas.]

queria deixar uma última fotografia neste longo texto de desabafo de desgraceira, que me dá um sentimento de beleza profunda, porque há uma seriedade gigantesca no que ela nos mostra. [nem sei mais se o texto continua fazendo algum sentido, mas acho que, no fundo, a justaposição de imagens pode ser uma boa aliada para pensar o problema de declarar guerra contra a domesti|cidade, tô juntando armas, e compartilhando elas com vocês.]

a fotografia é de um trabalho de matta-clark chamado splitting, de 1974, em que, junto com uma equipe, ele partiu ao meio uma casa que seria demolida.

eles literalmente partiram ao meio uma casa.

e a casa ficou de pé…

a casa fica de pé até quando partimos d/ela…