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Inflexões pandêmicas, trajetórias de não retorno

Texto de Aline Souza – @souzaline

Com ou sem diálogo, é inevitável nossa escolha pela ruptura com o modelo criado até aqui


Desde que essa pandemia teve início, ela provocou em mim algumas reflexões que na verdade já existiam e estavam sendo germinadas bem antes. Elas não haviam tomado coragem ainda de ganhar expressão. Em junho de 2020, quando fiz os primeiros contatos com a Zona de Contágio, um laboratório de trocas acadêmicas anárquicas que buscou unir seres estranhos e pensadores que questionam as novas práticas no plantationceno, as inquietações fonográficas sobre a nossa experiência foram ganhando as palavras. A pergunta que me fiz foi: e tudo isso não é fazer científico? Então o que estamos aqui refletindo sobre o nosso ser e estar no mundo não poderia, pois, contribuir para que a nossa [seres terranos] experiência possa ser transformada? Essas experiências compartilhadas sobre as muitas formas de habitar a pandemia refletem nossos questionamentos acerca dessa partilha.


Uma reflexão que me ocorreu desde que morei em São Paulo em 2019 é a discrepância de visão de mundo entre aquilo que a gente acredita como bem viver uma vida boa e saudável e aquilo que a gente de fato faz para ganhar dinheiro e pagar as contas. Parece-me tão incoerente. Vejo que há uma dissonância entre aquilo que eu acredito como importante para uma filosofia de vida e aquilo que o mundo capitalista, sua configuração tecnológica, as novas formas de controle sobre nossas vidas em formato algorítmico exige de nós o tempo todo.

Antes da pandemia da Covid 19 eu percebia muito as pessoas se vangloriando de serem workaholic, de viver em função do trabalho, de não terem tempo para si porque são tão bons funcionários [colaboradores de que?] e tão bons naquilo que fazem. Que acordam (isso quando dormem) e já estão conectados ao celular lendo as notícias, sabendo de tudo. Às 8h da manhã leram cinco ou seis jornais e entram no escritório já ligadas no 220V prontas para uma verdadeira guerra. Adrenalina no topo, pupilas dilatadas, um aceleramento sem fim. E não estou me referindo a uma cena de uma multinacional japonesa não, estou falando de um escritório de uma ONG que tinha cinco pessoas comigo. Agora, você pense, se uma empresa que se propõe a ser um ambiente mais humanizado, que se dedica a causas sociais e temas coletivos impõe esse ritmo a alguém, imagina outros segmentos da nossa economia.

Então, naquele tempo, para estar presencialmente em um escritório às 9h ou 10h da manhã, desde o momento que você acorda (muito cedo) sua vida já está dedicada totalmente para aquela função. Afinal, você precisa tomar seu café correndo, um banho rápido, vestir uma roupa adequada, sair de casa em passos rápidos, acessar um transporte público que, se for um ônibus de linha reduzida, irá passar só de hora em hora e assim com muito esforço consegue não se atrasar os cinco dias da semana, de segunda a sexta. Dentro dessa forma-cidade onde os descentramentos do eu-humano parece regra, você já começa a se dedicar para o seu trabalho desde o momento que abre os olhos. Aquele tempo de deslocamento não é destinado a você e sim ao trabalho. Em seguida, você vai passar as próximas cinco ou seis horas de sua vida sentada na frente de um computador, convivendo mais com aquelas pessoas do que o tempo que você vive / ou viveu com a sua família.

Esse modelo é completamente obsoleto. Ele não colabora em nada com a nossa saúde mental, física, emocional e espiritual. É um modelo doentio que não permite respirar. O ser humano se acaba em um modelo como esse. Definha. E corremos o risco de ao criticar esse modelo, sermos taxados de incompetentes, de vagabundos, de gente pouco dedicada, um profissional que não merece reconhecimento em última instância. “O mundo é assim mesmo” nos dizem, “acostume-se com a vida adulta”, falam. O que nos gera culpa, baixa autoestima, depressão e medo de perder o trabalho – o que é uma realidade cotidiana, diga-se de passagem. A instabilidade no trabalho parece algo que faz parte da moderna plantation, nos mantém domesticados, dóceis, sempre disponíveis dia e noite, alertas! Isso não me parece nada saudável. Chegamos então ao final de nossos dias exaustos. Sem energia para ler um livro, ter novas ideias, se inspirar em escrever um poema, uma peça de teatro, criar uma nova receita culinária ou fazer a política do vivente. Estamos sugados. Eu ainda me considero sortuda por escolher e conseguir trabalhar há alguns anos com causas sociais que me preenchem de alguma forma. Nem todo mundo percebe o mal que esse tipo de vida provoca e a rotina lhes causa resignação. As pessoas estão à margem dessas reflexões totalmente inseridas em contextos sociais e econômicos que não lhes permitem sequer refletir. Tanto pela falta de condições subjetivas – ausência de presença, como também pelos excessos da futilidade, do marketing, da publicidade, da influência de influenciadores, o que é uma grande enganação. As pessoas estão tomadas pela vontade de mostrar aos outros aquilo que não são. Sabemos que existem algumas pessoas que têm voz em nossa sociedade, precisamos chegar até elas para chamar a atenção para aquilo que importa no sentido amplo a fim de preservar a vida coletiva em comunidade e a dignidade para todos. É preciso destacar aqui que “aquilo que importa” para uns não importa nada para outros. Por isso estou marcando bem esse ponto.

No entanto, pensando na lógica das redes sociais, apenas a título de entendimento, existe também um monte de gente que não tem conteúdo. Não que eu concorde com a lógica de pensar as pessoas como “empresas de produção de conteúdo”, mas pessoas que não têm o que dizer e que estão falando pelos cotovelos se aproveitando dessa “permissão” que lhes é dada nas redes [in]sociais justamente porque a gente vive em um mundo pautado por algoritmos, pautado por likes, pautado por tecnologia sem propósito, no consumismo.

Eu também consigo traçar um paralelo entre o capitalismo [seu modelo de vida obsoleto], o planeta Terra e o corpo humano. Vejo a Terra como um ser vivo, dotado de memória, de vida que pulsa, que respira e transpira como uma planta ou como nós mesmos em nosso corpo humano, que é matéria cósmica, uma continuidade desse planeta Terra. Então, no mundo dominado por homens há tantos séculos, tornou-se natural mutilar a Terra planeta, mutilar a terra onde se planta alimentos (cada vez mais cheios de veneno), naturalizou-se explorar a natureza, avançar sobre esse corpo vivo assim como se faz com os corpos que foram tornados vulneráveis a tamanha brutalidade, os corpos femininos de mulheres e de indígenas e de negros e de pessoas não normativas. Ela a Terra, é mais uma mulher disponível para ser submetida às vontades masculinas, ao lucro, ao capital.

A Terra como ser vivo também precisa de descanso assim como nós. Corpo humano e corpo Planeta Terra como uma coisa única. Somos um mesmo corpo. Toda a vida está interligada, assim como estão as fases da lua, os ciclos das estações, os ciclos femininos que sangram e se renovam. A lua interna de cada mulher com a lua externa da Terra. A lua dentro de mim.


A gente se deixou enganar, a gente se envenena, a gente se descolou de tudo isso e fomos desaprendendo e quanto mais ignorantes disso a gente se torna, mas a capacidade extrativista do senhor capital se fortalece, cria outras bases para além da economia, cria suas facetas mais nefastas como o machismo e o racismo.
Nossa ancestralidade humana respeitava a terra, a água, o ar, o fogo como elementos sagrados, como forças da natureza que merecem nossa reverência. Nada está existindo para nos servir. Estamos aqui para comungar enquanto o sol nos permite. Se tem um ser vivo que ainda reserva essa memória bem viva dentro de si mesmo, esse ser é a mulher, com ela nasceu um portal que é a única maneira de chegar a esse mundo.

E de onde todos nós viemos. Sem exceção. A Mulher [fêmea, organismo feminino] é a única capaz de ligar esse mundo a outro. É através de uma mulher que os humanos nascem, é o útero de uma mulher a primeira morada de todos os seres humanos. No entanto, homens ainda insistem em violar tudo isso e de diversas formas diferentes, inclusive fazendo ao longo de tempos imemoriais as próprias mulheres se esquecerem da importância que essa conexão tem. E o que nós estamos fazendo? A gente se violenta diariamente para fazer parte da nova plantation tendo essa desconexão consumista como modo de vida. Estamos nos esforçando para fazer parte de um sistema obsoleto que por si só já é violento, ultrapassado. Atrasado.

Para além da pandemia de Covid-19 nos colocar, todos os países do mundo, em um lugar de muita precariedade e de muita pobreza porque acirrou as desigualdades sociais que já eram latentes, ao invés de iniciarmos um processo de derrubar as fronteiras que nos separam e avançar no entendimento comum de que tudo está conectado e que todos somos um só corpo chamado humanidade, organismo vivo que habita globalmente, estamos indo na contramão disso. Corremos risco de jamais nos ver como terranos, cidadãos globais do Planeta chamado Terra e assim acirrar a demarcação das fronteiras justificando ainda mais o preconceito contra o diferente, fortalecendo ainda mais essa sociedade persecutória que criamos ao vivenciar de modo deturpado os valores do cristianismo. A gente não entendeu nada.


Com isso criamos disputas entre nós mesmos, criamos a escassez, a imposição da uniformidade, a intolerância. Nesse instante existe uma guerra de mundos, um momento em que temos de decidir: ou seguimos escolhendo furar o olho do outro, ou aceitamos que estamos diante de uma grande encruzilhada, que temos dois caminhos diante de nós e precisamos decidir e, com isso, realizar uma grande ruptura com o destino de aniquilação que a gente vem escolhendo.


Podemos escolher o caminho da vida plena, do respeito ao nosso corpo, do respeito à natureza e à nossa ancestralidade, o caminho da compaixão e da solidariedade para com o nosso semelhante. A pandemia acelerou o prazo que a gente tinha para fazer essa escolha. Não é mais daqui a 10 anos, não é mais daqui a 20 anos. É já. Existe uma mudança que é de cunho espiritual. Existe uma mudança que é de cunho filosófico. De cunho político alicerçada em outra visão de mundo que tem muito a ver com a fala de Ailton Krenak em seus discursos e no livro ‘Ideias para adiar o fim do mundo’.


Afinal, nos próximos anos é quando vemos estabelecer as bases para nossa permanência no planeta ou vamos assistir a nossa aniquilação. Não vai ter bunker para nos salvar. Não vai ter região tropical que vai sobreviver, embora muitos pensem que tudo bem exterminar as Américas, destruir os trópicos e acabar com tudo, pois os ricos irão para a Suécia, já que a Suécia vai virar a nova Copacabana! É a finitude do nosso mundo como a gente conhece. A desertificação das florestas tropicais, a poluição completa das águas limpas e nascentes, o alimento cheio de veneno que mata aos poucos, a falta de chuvas, novos vírus aparecendo. É pavoroso. O acontecimento pandêmico nos deslocou de onde estávamos de modo inevitável ainda que muitos de nós estejamos desesperados pelo retorno a certa “normalidade” que jamais voltará a existir, pois causou um ruído nas entranhas mais profundas de nossa existência.