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zona de contágio

corpos sensores e ciência DE RISCO

Nós, que pensamos em “ideologia”, somos vulneráveis. Nós não possuímos os saberes pertinentes para identificar e compreender os dispositivos de captura e de produção de impotência. Ora, lá onde se pensa que os feiticeiros existem, aprende-se a reconhecê-los, a diagnosticar seus procedimentos, a se proteger deles, e ainda a contra-atacar” (I.Stengers).

Laroiê! Salve o mensageiro!

Zona de Contágio é um laboratório situado, prática coletiva de uma ciência do contato implicada em habitar a pandemia COVID-19 como um acontecimento: “um acontecimento está no interior da existência e das estratégias que o perpassam”. Ele surge como uma plataforma de convergência entre pesquisadorxs-ativistas cujo trabalho de investigação viu-se forçado a pensar com a intrusão viral. Uma encruzilhada.

O vírus é a entidade estrangeira que fala pelo nosso corpo, através dele, de sua vulnerabilidade e estupidez. Fala que nossas noções de “política” e de “progresso” ou “civilização” são débeis, inócuas. Faz com que sintamos a febre da Gaia Criatura como resposta imunológica às simplificações ecológicas e biológicas produzidas pelos modos extrativistas que seguem fazendo desertos em nome do “crescimento econômico”, “desenvolvimento”; que seguem produzindo muros, cercas, desejo de segurança e separação. 

O medo da contaminação como forma de governo das vidas sempre foi a principal bio-tecnologia colonial,  atualizada pelos regimes autoritários modernos. Tecnologias de vigilância são convocadas ao controle epidemiológico; pessoas tomadas por um desejo de segurança profilática passam a “denunciar” outras pessoas que precisam fazer qualquer coisa na rua porque, às vezes, não se tem muitas opções. Outras começam a professar o “Estado Forte” como forma de contenção – como se não nos bastasse a força do que já temos. Fala-se em “Guerra”, mas é importante responder: queremos a restituição da vida em sua possibilidade erótica, não somos os seus soldados!

Estamos na encruzilhada Hobbes x Espinosa; o Estado e a hipótese do Comum!  O momento em que desejamos que o Estado tome medidas de exceção de controle populacional em nome da segurança sanitária, é o momento em que renunciamos à nossa potência de cuidado da saúde coletiva. Seremos capazes de construir alternativas com nossa inteligência coletiva? Como ativar o Comum, a potência de produção da saúde entre todos, promovendo vínculos solidários de cuidado coletivo? Como infraestruturar as estratégias, dispositivos, tecnologias, diferenças, práticas e conhecimentos que possam dar lugar a essas formas de vida?

A natureza do poder se modificou de tal forma que hoje confunde-se com a própria vida. Está na paisagem da cidade e suas infraestruturas, nas centenas de dispositivos que conduzem nossa atenção, localização, nas catracas, na produção dos desejos e das frustrações; nas centenas de outros dispositivos que nos conduzem à novas formas de desempenho; novas formas de concorrência.

Os arranjos sociotécnicos ao mesmo tempo vigiam e controlam toda possibilidade de fuga com outros inúmeros dispositivos de neutralização preventiva. A algoritmização da vida bloqueia qualquer possibilidade de imprevisto, de acontecimento e abertura. O poder se organiza de forma imanente à vida e sua expressão de exterioridade é apenas uma expressão performativa e mais visível dele – ainda que nos pareça mais confortável imaginar que o Poder está lá, sentado em uma cadeira. “Uma perspectiva revolucionária já não tem a  ver com a reorganização institucional da sociedade, mas com a configuração técnica dos mundos”. Na metrópole, assinala o Conselho Noturno (2019), o que encaramos não é mais o velho poder que dá ordens, o poder que localiza-se desde uma exterioridade, mas uma forma de poder que logrou constituir-se como a ordem mesmo desse mundo. “A metrópole é o simulacro territorial efetivo de um mapa sem relação com nenhum território”

Diante da crise de presença alimentada por inúmeros dispositivos de produção de corpos neoliberalizados, Zona de Contágio convida ao diálogo praticantes que desejam tensionar as modernas e habituais fronteiras entre ciência e política; entre corpos e pensamento. Assumir nossa debilidade existencial como ponto de partida para pensar os deslocamentos do político. Pensar a nossa crise de presença como condição epocal seria também investigar os diversos dispositivos que a produzem, mas, por outro lado, experimentar como reativar “uma maior atenção ao devir da presença dos entes” no mundo vivo; retomar nossa capacidade de“co-pertencimento e co-produção a cada situação vivida”; encontros. Ciência de contato. Saber qual território habitamos, qual é a terra que pisamos quando falamos “cidade”, quais as relações que a constituem, quais são os saberes desautorizados, os saberes sujeitados, os saberes das lutas que desejamos convocar? Uma ciência objetora de tudo que nos envenenou: produtividade, crescimento, competição, originalidade. Uma ciência de combate que acontece entre corpos e suas diferenças.

Com o acontecimento COVID-19, o Laboratório Zona de Contágio instaura-se como um dispositivo de pesquisa e intervenção na medida em que a produção coletiva de conhecimento sobre as atuais possibilidades de fabricação de uma vida não-fascista torna-se urgente. Se o fortalecimento de governos autoritários já era uma ameaça à vida comum, a intrusão viral potencializa a disseminação de uma cultura imunitária e securitária de contornos fascistas no tecido da própria vida social.

A crise é maior, é total. Ela nos faz pensar muito concretamente sobre que vida estamos vivendo, qual vida queremos viver  – o vírus, como intruso, fabrica uma das maiores bifurcações da história: a vida tomada como forma securitizada, protegida, entretida, mobilizada para destruir “inimigos”; mas do outro lado, a vida em seu excesso, como forma erótica de habitar o mundo que não queremos perder; uma vida febril que sabe que a liberdade é também interdependência, risco, confusão, travessias. Exu.