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9ª Mostra Ecofalante de Cinema [Ambiental]

  • por

Juliana Meira

Entre os dias 12 de agosto e 20 de setembro, está acontecendo a 9ª Mostra Ecofalante de Cinema. Um “environmental film festival” promovido pela ONG Ecofalante junto a parcerias privadas e governamentais, mas que vem suprimindo a palavra Ambiental da chamada pública da mostra desde a 8ª edição.

Podemos levantar algumas hipóteses acerca do efeito dessa mudança sobre financiamentos. Mas essas hipóteses não tiram de perspectiva, pelo contrário, evidenciam ainda mais o fato de que a noção de meio ambiente – por sua vez comumente associada à de natureza, ainda muito mais complicada – vem passando por tensões. Afinal, o que você associa a “Meio Ambiente”? E quais as sugestões que recebemos sobre essa noção pelo modo como ela é usada por diferentes pessoas, movimentos, instituições, processos educativos e etc? Quando faço essa pergunta, mesmo pessoas que tem uma perspectiva mais ampla sobre meio ambiente localizam lugares comuns como: “problemas ambientais”, “poluição”, “sustentabilidade”, “desmatamento e aquecimento global”, etc. Associações rasas, muitas vezes promovidas pela mídia e por um ambientalismo conservacionista europeu, do norte global, aos quais nem sempre resistimos a endossar. 

Ainda assim, quanto mais nos envolvemos, mais nos damos conta de que não há aspecto da nossa vida que possa estar fora disso, que não se relacione com o espaço ao redor e assim o transforme de alguma maneira e seja por ele transformado, em períodos mais ou menos longos no tempo. 

Categoria de envolvimento

A Mostra Ecofalante como mostra de cinema ambiental, oferece a possibilidade de pensarmos meio ambiente não apenas como uma categoria mais ampla do que essas associações apontadas acima, mas de certa forma indica que Meio Ambiente é uma categoria que não foi de fato “fechada”. Ou seja, mantém abertura para continuar se transformando e servindo a propósitos epistemológicos e políticos diversos.

Quais os “meios” de dizermos que sim, percebemos nossa indissociabilidade em relação a Terra, a indissociabilidade entre social e ambiental? Já que ainda que a cabeça se mantenha a maior parte do tempo no espectro cartesiano, nossos pés já queiram pisar o chão. As noções de socioambiental e sociobiodiversidade* demonstram essa situação limítrofe, ou transicional. 

Assim, podemos criar novas categorias que funcionam como enxertos que continuam parte da “planta” como outra espécie, mas que permitem que a vida continue a atravessá-la mesmo na diferença. Mas também podemos continuar com a categoria de ambiental tornando aquele sentido, mais restrito e quase alheio ao social, como apenas um dos momentos da história desse conceito, de quando éramos um pouco mais ingênuos e não percebiamos que nossas ‘palavras’ poderiam criar e transformar paisagens inteiras.

No segundo caso, a mostra é um exemplo do como já iniciamos outro ciclo de vida do conceito de meio ambiente. Os filmes da mostra estão organizados em programas que compreendem categorias como “Ativismo”, “Consumo”, “Economia”, “Emergência Climática”, “Povos & Lugares”, “Tecnologia” e “Trabalho”. Saúde, Religiões e Espiritualidade, Gênero e Habitação, por exemplo, são categorias não instituídas como programas da mostra. Mas que atravessam os filmes de outros modos. 

Alguns dos filmes

Um desses documentários que alargam o campo da noção de meio ambiente com diferentes temáticas, narrativas, outras formas de configurar os problemas ambientais, é Time Thieves – Ladrões do Tempo, de 2018 por Cosima Dannoritzer, –  mesma diretora de A história secreta da obsolescência programada (2010) e A tragédia do lixo eletrônico (2014) –  e fala sobre o tempo como recurso. Através de uma narrativa que conecta as tecnologias digitais e a monetização do tempo roubado no “faça você mesmo”, ou durante nossa movimentação nas redes sociais. Nos ciclos de produção industrial e consumos completamente dissociados dos ciclos de reprodução da vida, o tempo é roubado também. É o caso das linhas de processamento de frango nos EUA. 

Se em algum momento podemos ver com naturalidade o fato de nós próprios realizarmos o nosso pedido e pagamento através de totens quando vamos a um restaurante fast-food e sequer percebermos que trabalhamos para o estabelecimento. Não é tão facilmente naturalizado para as pessoas que perdem sua saúde, seu bem-estar, dignidade ou até a própria vida por se verem obrigadas a trabalhar em condições onde, por exemplo, não podem sair de seu posto sequer para ir ao banheiro, pois as idas ao banheiro podem ser descontadas de seus salários. E mesmo talvez não sendo o foco do roteiro, está presente o fato de que diferentes grupos sociais, para não dizer classes, vivem essa relação com o tempo da produção e da eficiência de formas diferentes. Podemos notar isso durante a pandemia, onde muitas das pessoas em quarentena tiveram seu tempo roubado de uma forma completamente diferente dos trabalhadores do capitalismo de plataforma (motoristas, entregadores e etc.). 

Por outro lado, Deus, coloca sua proposta em outras cores, sons e até outro idioma. É um filme chileno, de 2019, dirigido por Christopher Murray, Josefina Buschmann e Israel Pimentel. Um quase silencioso, com o texto menos direto e que deixa brechas ao fazer suas sugestões muitas vezes se utilizando apenas da sequência de eventos apresentados. Ele aborda a visita do Papa Francisco ao Chile em 2018. O filme mostra a preparação dos católicos e da cidade para a recepção do Papa, em meio à crise do catolicismo por um lado, e os evangélicos por outro. A agitação e o tempo da narrativa dada a esses grupos parece ser contrastada pelo tempo-espaço conferido às culturas tradicionais, colocadas como em continuidade com os recursos naturais,  povos da terra. A cena da mulher com as crianças falando sobre a interdependência entre nós e a água, é uma espécie de oásis de lucidez, pequeno e potente. O próprio nome do filme, assim no singular, diante do que ele apresenta, parece disparar uma série de questionamentos sobre a escolha dos diretores. É um filme que comunica por espaços não preenchidos por informações no tempo do filme, por contraste de materiais, detalhes do cotidiano, pelas sensações e incômodos.

Há também uma diversidade em relação a como os filmes se aproximam ou se afastam do roteiro baseado na denúncia-solução. Como eles respondem direta ou indiretamente a uma sensação de “Então, e agora?”, “O que fazemos com isso, ou a partir disso?”… Penso que documentários acabam participando de modo mais ou menos explícito da formação de problemas socioambientais ou expressam enquadramentos para os mesmos que podem ter maior ou menor peso a partir do modo como são divulgados, dentre outras coisas.

Alguns filmes, um pouco mais felizes e esperançosos, são sobre essas respostas, essas ações, como é o caso do curta de Cleisyane Quintino de 2019, Cerrado de Volta: a restauração da Chapada dos Veadeiros. Ali é apresentada a importância do Cerrado e o trabalho estratégico de reflorestamento em áreas de nascente, cabeceiras e leito dos rios que cercam as águas correntes que partem do centro para o resto do país. O projeto é  realizado pelo ICMBio junto à pesquisadores e às comunidades de moradores há mais de 10 anos. Há um centramento na fala de técnicos e analistas na composição do documentário, o que parece deixar um espaço em aberto sobre como o processo todo aconteceu pelos olhos de mais moradores. 

Por outro lado, parece deixar brotar outras relações, como o modo que degradação e restauração possibilitam diferentes formas de envolvimento da população local, técnicos e analistas na configuração de redes junto à outros atores do Cerrado. Nesse caso, o projeto conectou diversas demandas e tipos de interesses, como por exemplo a demanda do projeto por pessoas para realizar a coleta manual de sementes para plantio direto, com a demanda imediata da população por renda, sem contar as demandas das diferentes formas de vida do próprio bioma em questão. As sementes diversas coletadas germinam ao longo do tempo, reestruturando os três estratos da vegetação nativa: árvores, vegetação arbustiva e as gramíneas, vegetação rasteira. Tudo isso é misturado com areia e terra fazendo a Muvuca, que é distribuída no solo com o auxílio de uma calcareadora, regulada por um especialista após longa pesquisa, para distribuir a exata quantidade necessária de sementes por metro quadrado. São muitas interconexões, saberes e práticas, muitos ajustes entre humanos, vegetais e materiais ao longo do tempo, que até o momento da gravação do documentário, resultaram em 105 hectares restaurados das áreas de pasto degradadas.

Esses múltiplos agenciamentos muitas vezes invisíveis a quem não participa dos bastidores do processo é o que sustenta a narrativa do  filme O custo do transporte global, de 2016, de Denis Delestrac… Que aborda a imensa rede do transporte marítimo de mercadorias. Uma questão inicial guia sua investigação e seus registros: Como algo produzido em diferentes países ao redor do mundo, que atravessa oceanos, pode ser mais barato do que o que é produzido localmente?  A resposta apresenta inovações e desenvolvimentos tecnológicos incrementais que aconteciam há anos sem que nós percebêssemos de onde estamos. A pergunta de Delestrac esconde uma outra (ou pode ser traduzido como outra): Que abusos humanos e ambientais foram institucionalizados para que esses produtos fossem tão baratos? As “externalidades” que não compõem o custo final desse transporte, já que são pagas por trabalhadores, animais marinhos encalhados, pulmões inflamados, áreas degradadas, aquecimento global, e etc. Registros de navios em outras nacionalidades que não a de seus donos são vendidas como produtos em feiras como modo de transferir para fora das áreas que mais se “beneficiam” desse comércio, seu maior peso. E ainda que não exista fora do planeta, são os filipinos (a mão de obra mais barata) que passam a maior parte do tempo longe da família em navios realizando trabalho pesado em jornadas longas, não por acaso, mas porque seu governo atua num esquema que praticamente os dispõe como mercadoria. 

No fim Delestrac acaba na etiqueta. Mas se a “tag” faz sentido para a narrativa que se fecha de modo circular, outros inícios poderiam ter sido escolhidos para não deixar quase que como única solução a atitude dos consumidores/clientes dos produtos finais.

Antes tarde do que não

São muitos filmes, debates, algumas matérias condensadoras, e uma oportunidade para repensar a categoria “ambiental”, talvez menos como recurso classificatório, mas como espaço onde determinado tipo de relações são estabelecidas. E desde o dia 31 de agosto estão também disponíveis os filmes do programa “Clássicos e Premiados”, com uma série de filmes brasileiros, dos quais muitos atravessam realidades indígenas. Confiram a mostra!

*DIEGUES, Antônio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: NUPAUB – Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras – USP/Hucitec, 2008. /// Para embasar o conceito de sociobiodiversidade, Diegues parte da presença das comunidades tradicionais em áreas de preservação para mostrar como o ambientalismo europeu não pode ser importado para o contexto brasileiro e para a construção de políticas que orientam a gestão dessas áreas sem grandes problemas socioambientais.///