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Cinema de urgência e o festival Brésil en Mouvement

Cinema de urgência e o festival Brésil en Mouvement

 

Entrevista com Érika Campelo e Beatriz Rodovalho sobre o festival Brésil en Mouvement (BEM) 

por Frederico Lyra

 

Entre os dias 27 de setembro e 01 de outubro ocorrerá em Paris a 12ª edição do festival de cinema Brésil en Mouvement (BEM, Brasil em Movimento). O BEM é essencialmente um festival de filmes documentários políticos que, além da exibição de filmes, conta com toda uma série de debates ligados diretamente à programação. Com uma programação divida em várias sessões diárias, de filmes agrupados em torno de temáticas semelhantes (dentre elas as lutas dos povos indígenas, lutas das mulheres, lutas no campo, política e religião) o BEM busca mostrar construir uma constelação de filmes que possam transmitir uma ideia das diversas e complexas lutas que atravessam o Brasil, e que se agravaram ainda mais na situação atual de pós-golpe. No entanto, não são todas as ideias que são exibidas. O festival tem um posicionamento claro e não busca uma, por assim dizer, hipotética neutralidade na sua programação. O festival assume de que lado da luta está. Decidimos então iniciar as nossas contribuições ao blog Urucum (que irão girar em torno da discussão e análise do contexto politico francês e franco-brasileiro, como é o caso aqui) com uma entrevista com duas camaradas envolvidas diretamente no festival: uma das idealizadoras, Érika Campelo (VoxPublic), e uma das curadoras, Beatriz Rodovalho (doutoranda em cinema na Université Paris-Nouvelle 3) – ambas também compõem parte da diretoria da associação Autres Brésils (Outros Brasis) que por sua vez organiza o festival.

Não iremos nos estender na apresentação da entrevista, mas cremos que as respostas das camaradas contém ao menos dois prismas fundamentais para pensar o que é a militância, arte e política neste tempo presente: primeiramente, a importância que eventos como este tem para dar a real dimensão internacional, muitas vezes esquecida, que as lutas que ocorrem em território brasileiro possuem, e a dificuldade (impossibilidade?) de se pensar, num mundo quase que completamente subsumido ao poder do capital, a distinção clara entre política e arte. O que Érika e Beatriz nos convidam a pensar é que sob as coordenadas atuais do sistéma esta distinção se torna cada vez mais meramente formal e que dificilmente as escolhas estéticas podam ainda ser evacuadas do posicionamento político daqueles que as tomam. A fronteira é tênue e deve ser pensada.

1) Vocês poderiam descrever o que é o BEM e contar um pouco da historia de um festival que já chega na sua 13 edição? Como ele surgiu? Como evoluiu o seu formato e programação?

Érika Campelo – O festival BEM (Brasil em Movimento) começou em 2005 no ano do Brasil na França. O ano do Brasil na França foi um ano cultural e o Brasil estava como convidado de honra. Os membros da associação, os membros fundadores que participavam da associação Autres Brésils acharam que as temáticas e a programação do ano do Brasil na França eram temáticas muito culturais mas pouco politicas e que as questões sociais do Brasil, que sempre foram muito forte: a questão do acesso à terra, a luta por moradia, os catadores, todos esses movimentos sociais, nada disso estava representado neste ano do Brasil na França. Então a gente resolveu criar o festival com temáticas politicas. O formato evoluiu. Eu acho que continuamos passando filmes e principalmente os debates com uma conotação politica muito forte. Queremos mostrar o que está acontecendo no Brasil, com a sociedade brasileira, mas também fazendo um eco com a sociedade francesa. A gente vive num mundo globalizado e as questões sociais e ambientais são as mesmas e se impõem para as duas sociedades – francesa e brasileira – então essa questão do paralelo  entre os dois países é muito importante. O formato evoluiu pois a gente agora tem uma preocupação mais estética, que no começo agente não tinha, de cinema. Só queríamos passar filmes militantes. A gente continua passando filmes militantes, mas com uma preocupação estética maior.

2) Como foi pensada a programação desta edição de 2017?

Beatriz – A programação do Festival Brésil en Mouvements baseia-se sobre uma chamada para filmes aberta e um trabalho de curadoria. A edição de 2017 estruturou-se a partir de Martírio (Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho, Tita, 2016). Depois de Corumbiara (2009), Martírio dá continuidade ao projeto cinematográfico de Carelli, fundador do projeto Vídeo nas Aldeias – – hoje interrompido por falta de financiamento. Martírio trata da história do massacre dos povos Guarani e Kaiowá por seus perpetradores: os latifundiários e o Estado (que se confundem). Acredito que Martírio seja um filme-monumento, mas um momento para o presente, um monumento urgente. Mesmo que Martírio tenha sido concluído antes, desde o golpe de Estado de 2016, a perseguição aos povos autóctones se intensificou, e eles estão cada vez mais vulneráveis. As ameaças, as expulsões, as torturas, os assassinatos, os massacres aumentam, legitimados pelo Estado.

Essa urgência orientou a programação deste ano. Diante dos retrocessos e dos desmontes da consolidação do golpe, diante da exposição da farsa que é a nossa democracia, o cinema documentário se torna um cinema de urgência. Perguntamo-nos: o que pode o cinema?

O filme de Carelli é uma profissão de fé – teimosa, tola talvez – no poder do cinema (de certa forma, Brésil en Mouvements também o é). Tanto que ele o conclui citando Rithy Panh, cineasta cambojano que desenterra os mortos do seu genocídio: “mais do que criar, filmar é ‘estar com’, de corpo e alma… Tomar deliberadamente partido por acreditar que nada é imutável”.

Carelli foi criticado por Eduardo Escorel ao retirar a frase de Panh de contexto (ele não a cita por inteiro). Pouco importa. Panh trabalha com espectros, Carelli, com o genocídio no presente, com os corpos ainda quentes.

Assim, privilegiamos a temática indígena.

Como Carelli aceitou nosso convite para ser padrinho do festival, dedicamos uma sessão a uma produção recente do projeto Vídeo nas Aldeias, junto de um debate sobre suas perspectivas.

Temos também, por exemplo, Ava Yvy Vera, filme feito por um coletivo indígena em parceria com a UFMG, que trabalha os laços mágicos dos Guarani e Kaiowá com o território – e sua destruição pela monocultura da soja. A partir de imagens de arquivo, Grin (2016), de Roney Freitas e Isael Maxakali, por sua vez, faz a anamnese da Guarda Rural Indígena, uma das marcas mais sombrias da ditadura sobre os povos autóctones.

De resto, escolhemos também filmes que tratam da luta de outras minorias políticas, como Precisamos Falar do Assédio (Paula Saccheta, 2016), que dá voz às mulheres vítimas de violências. No filme, as histórias íntimas de violência tornam-se políticas pelo testemunho.

Há alguns anos, trabalhamos com filmes que diluem as fronteiras entre o documentário e a ficção (principalmente os do cineasta brasiliense Adirley Queirós). Em A Cidade do Futuro (Cláudio Marques, Marília Hugues, 2016) três jovens reencenam suas próprias vidas. A partir desse filme, debateremos sobre os desafios da juventude LGBT, sobretudo em situação precária.

De qualquer forma, os temas – e essas constelações – surgem a partir dos filmes que recebemos e que chamamos.

É o caso dos outros filmes sobre a resistência política – Resistência (Eliza Capai, 2017), Na Missão, com Kadu (Aiano Benfica, Pedro Maia de Brito, 2016), Lute Como uma Menina (Bia Alonso, Flávio Colombini, 2016), em que a forma militante é privilegiada.

 

 

 

 

3) Qual a importância de um festival de cinema politico brasileiro na França em um momento como o presente?

Érika – A importância de um festival politico brasileiro na França se da pelo fato do mundo passar por um momento muito difícil onde as forças reacionárias e neoconservadoras estão atacando a sociedade em todos os seus ganhos: liberdade de expressão, nos direitos, direitos das mulheres, direitos das minorias e a democracia mesmo estão todos sendo ameaçados. Assim, um festival como o nosso hoje aqui na França é importante por duas razões. Uma para o Brasil. Para agente falar desse momento conturbado e difícil pelo qual o Brasil está atravessando. Eu acho importante divulgar, é importante a solidariedade internacional. Eu acho que o festival é uma boa vitrine para mostrar que tem muita gente e muitos movimentos que estão no Brasil e que estão resistindo. A segunda é que eu acho que para a França também é importante. Os direitos na França também estão sendo atacados pelo sistema neoliberal com uma força enorme, então também se torna fundamental mostrar que na resistência no Brasil e que na resistência aqui na França o importante é a transversalidade das lutas. De como resistirem juntos: a sociedade civil e os movimentos sociais. A questão é essa.

4) Pegando o gancho da resposta de Beatriz na segunda pergunta, quando ela se questiona: “o que pode o cinema?”, com a afirmação de Érika de que “o importante é a transversalidade das lutas”, eu lhes pergunto: o que pode o cinema para ajudar ou articular a transversalidade das lutas?

Beatriz – A questão do poder de interferência do cinema na realidade política – na “partilha do sensível” (Rancière), na transformação concreta da realidade que ele representa – é complexa. Jacques Rancière, por exemplo, analisa profundamente a questão da política da estética e da estética da política. O cinema, de certa forma, não escapa às aspirações do seu tempo histórico – sejam elas libertárias ou reacionárias (vide o cinema de propaganda). Aliás, veja o estranho objeto cinematográfico contemporâneo que é Polícia Federal: A Lei é para Todos, filme de propaganda tosca – filme tosco de propaganda – “baseados em fatos reais” sobre a Lava Jato). Veja, ainda, a importância do cinema documentário profissional e militante/amador nos movimentos políticos dos anos 1970 (a partir de 1968) em todo o mundo. Antes, no Brasil, o próprio Cinema Novo nasce com um propósito de emancipação política e estética. Outros exemplos: o cinema soviético dos anos 1920, que é indissociável da revolução comunista. Ou o trabalho de D. W. Griffith que desenvolveu o cinema narrativo norte-americano exaltando valores conservadores nos anos 1910 – veja O Nascimento de uma Nação (1915), Intolerância (1916)… Ou mesmo John Ford… enfim.

Para que serve o documentário? O documentário é principalmente um cinema sobre o Outro (ou o Eu enquanto Outro).

Num plano muito concreto, pergunto-me qual é a responsabilidade ética de um documentarista que penetra (e na minha cabeça esse documentarista é sempre um homem) um determinado grupo (aqui, ao qual ele não pertence) para fazê-lo de objeto de seu filme. O que acontece quando ele sai? Muitas vezes, ele apenas passa e leva consigo muito, sem nada deixar.

Se ele é estrangeiro ainda, pode levar muito mais, em seu encanto eurocêntrico com o outro do terceiro mundo. Permito-me dar outro exemplo: no fim do documentário, uma homenagem da cineasta francesa ao “Brasil que nunca desiste”.

Em anos de Brésil en Mouvements pude ver alguns filmes de cineastas europeus que partem à descoberta de um certo Brasil, de comunidades que vivem subumanamente…
Eles vêm, testemunham a miséria, encantam-se com a resiliência (teimosa vontade de sobreviver) de um povo abandonado pelo poder público, encantam-se com esse je ne sais quoi do subdesenvolvimento.
No fim, partem com um filme que só afirma seu olhar eurocêntrico sobre essa gente. E o que deixam? Quantos não passam e não arrancam um pedaço (de imagem) desses brasileiros para levar para fora? Esse olhar é ainda míope – não se escavam as causas de tanta falta, não se confronta o Estado.

Veja o filme de Daniel Cohn-Bendit, por exemplo, que exibimos na abertura da edição de 2015: Sur la Route Avec Sócrates (Niko Apel, Ludi Boeken, 2014). Para mim, trata-se de mais um europeu que penetra as comunidades mais pobres do Brasil sem questionar sua própria posição, seu próprio olhar (por outro lado, o filme coloca outras questões que a comissão de programação julgou relevantes).

É claro que o cineasta brasileiro também pode fazer o mesmo, transitando entre esses abismos horríveis.
Porém, como pode um cinema tão precário transformar vidas tão precárias? Como construir o olhar sobre o outro? E para quem?

Quanto à questão da transversalidade das lutas: o cinema pode colaborar, primeiro, como práxis. Como uma prática democrática, capaz de construir uma comunidade e uma representação dessa comunidade, de suas lutas, de seus sonhos, de seus horizontes. Esse é o cinema que emerge dos coletivos. Tenho a impressão de que as mulheres são as primeiras que se confrontam à necessidade da transversalidade e da convergência das lutas. Um certo cinema feito por mulheres emerge dessa consciência. O cinema também pode apontar para a transversalidades das lutas pelo conteúdo e pela forma, é claro, que serão consequência da posição assumida pelos cineastas. A circulação dos filmes também pode estabelecer um diálogo, uma convergência dessas lutas diversas.

5) E por fim, uma questão especulativa. Quais as expectativas para o impacto que o Golpe de 2016 pode ter na produção cinematográfica brasileira e, desta forma, influenciar, mesmo que indiretamente, as próximas edições do festival?

Beatriz – Desde o Golpe de 2016, a classe cinematográfica têm-se mostrado bastante mobilizada (mas talvez não o suficiente). Por exemplo, sua reação contra o desmonte do Ministério da Cultura (que continua a existir como instituição, mas violentada por dentro, eu diria) foi decisiva. Em 2016, os grupos, principalmente os de mulheres do cinema, estavam mais articulados do que agora.

As leis de incentivo fiscal que possibilitam a produção cinematográfica também se mantêm, e, ao que tudo indica, serão renovadas para 2018.

Porém, as leis que exigem uma cota de produções brasileiras nos canais da televisão paga, que impulsionaram a criação de inúmeros programas e de séries brasileiras, correm um sério risco, e sua dissolução representaria um verdadeiro impacto no mercado.

Não há como não se perguntar se o que se começou com o cinema da Retomada (desde 1994) não constituirá novamente mais um dos ciclos de ascensão, de ruína e de recomeço da produção brasileira. Esse fantasma histórico certamente ainda assombra desde os anos Collor.

Uma questão recente que movimentou a classe foi a troca da presidência da ANCINE (Agência Nacional do Cinema), órgão que ganhou uma importância vital para o cinema brasileiro desde sua criação em 2001.

Por outro lado, não houve mobilização para evitar os contínuos golpes contra a Cinemateca Brasileira, em São Paulo (houve uma ínfima reação da classe paulistana). A situação da preservação, da difusão, da exibição do patrimônio cinematográfico brasileiro é catastrófica. Não há política pública de preservação do cinema nacional (há, mas eu poderia dizer que é quase como se não houvesse). Essa também não é a prioridade dos cineastas brasileiros, que, no entanto, a tomam como símbolo.

Outro problema autorizado pelo Golpe de 2016 é a volta da censura, por enquanto imposta principalmente por meio dos discursos promovidos pela sociedade civil e de ações pontuais da polícia militar – acabamos de ver uma performance teatral impedida, peças de teatro interrompidas ou ameaçadas… No entanto, isso começa a tomar uma forma institucional. Um juiz suspendeu a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu no Sesc de Jundiaí (São Paulo), porque um Jesus Cristo transexual seria uma representação “atentatória à dignidade da fé cristã” (aliás, é inacreditável o quanto esse tipo de “cristão” de ontem e de hoje é o avesso do que Jesus era – tanto o Jesus histórico quanto o que dele se narra na Bíblia; enfim, eles estupram tudo o que podem).

No cinema, durante o processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff, o filme Aquarius (Kléber Mendonça Filho) foi vítima de ataques violentos da direita raivosa que acha que Lobão e Roger são artistas – porque a equipe denunciou o golpe em Cannes. Justamente, nesse cenário, Lobão e Roger viram intelectuais.

Essa censura pode vir também no momento da constituição das comissões dos mecanismos de fomento para o cinema (editais), tanto para produções de filme quanto de mostras, privilegiando-se certo projetos a outros. Em São Paulo, inclusive, isso já foi colocado em questão quanto ao resultado de um edital de fomento municipal. O Golpe, assim, que elegeu figuras como João Dória e Marcelo Crivella, também reforça políticas de desmonte da cultura tanto municipais quanto estaduais.

O cenário político certamente legitima e promove discursos e ações reacionárias da qual o cinema é e será objeto.

Como reação, desde o Golpe multiplicam-se produções independentes e feitas sob um certo modelo de cinema ou de vídeo de guerrilha – “na raça” – e que circulam por plataformas gratuitas como o Youtube.

Nesse sentido, talvez Brésil en Mouvements volte a se aproximar mais do cinema militante. Mas se for o caso, eu preferia que isso acontece com uma reflexão sobre essa forma cinematográfica.

O festival Brésil en Mouvements nunca fugiu de tomar posição e de afirmar essa posição. Uma possível conseqüência direta disso para as próximas edições pode acontecer no apoio financeiro que vem da Embaixada do Brasil na França, que sempre foi essencial. Contudo, a própria instituição confronta-se com uma redução orçamentária para a cultura, e Brésil en Mouvements não é a única vítima desses cortes. Se o Itamaraty tornar-se “menos democrático”, isso certamente influenciará sua política cultural na França. Mas não sei dizer como. De qualquer modo, BEM não é um festival partidário; os anos Lula e os anos Dilma, que marcam todo o período de existência do festival, foram objeto principal do olhar que constroem os filmes programados e os debates promovidos. Brésil en Mouvements situa-se ao lado, é claro, dos movimentos sociais e da criação cinematográfica.

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