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Autonomia e organização por Toni Negri

Autonomia e organização

por Toni Negri

Assembléia na Casa do Povo em 2016

publicado originalmente no Jornal Nossa Voz

O projeto político do neoliberalismo, a partir dos anos 1970, é um projeto fundamentalmente relacionado a uma reorganização do trabalho e da força de trabalho ao redor do mundo. [Esse projeto] consiste em fazer trabalhar a sociedade como um todo, e não apenas as fábricas que, através da automatização e da robotização, são cada vez mais esvaziadas. Como se faz para lutar contra o fato de que o capital hoje retira, [o capital] extrai sua valorização de toda a sociedade, das relações sociais, da vida, da educação, da saúde, de qualquer lugar onde exista trabalho social (inclusive o trabalho das fábricas), enquanto integrante da sociedade? Como se faz para lutar contra isso? Eu já sou velho, e venho de uma experiência que foi aquela da autonomia nas fábricas; foi uma autonomia contra os patrões e contra os sindicatos para determinar uma ruptura frente ao sistema salarial que dominava a nossa vida, a vida dos trabalhadores. Hoje, o problema consiste em como fazer para ganhar essa batalha contra a exploração social. É por isso que movimentos como os de São Paulo sobre o transporte público [Movimento Passe Livre – MPL] são tão importantes. São lutas que sinalizam um lugar estratégico, que promovem uma ferida na acumulação capitalista.

As experiências de lutas sociais são muitas e muito vivas. Pensem, por exemplo, naquilo que ocorreu a partir da primeira onda a colocar esses problemas, que começou em Seattle em 1999 e terminou em Gênova com um enfrentamento dos novos proletários contra os patrões do mundo – ou seja, o G8. A segunda onda é a que começou em 2011. Diante dessas situações temos uma série de respostas capitalistas cada vez mais fortes, cada vez mais duras. Por quê? Estamos no limite da capacidade capitalista de se reproduzir nas formas neoliberais. É verdade. É verdade que eles perderam… Eles, os patrões, eles, os capitalistas. Perderam a relação com a sociedade. A questão de um mecanismo de acumulação social se revelou muitíssimo mais difícil que aquilo que eles podiam pensar. Eles fecharam as fábricas porque elas foram tomadas por lutas cada vez mais intensas. Lutas marcadas pelas continuidades socialistas – ou melhor, na direção do comunismo. E a partir deste momento eles tentaram reconquistar o controle do sistema por meio da dominação financeira do mundo. Hojeem dia, aqueles que comandam as indústrias não são os industriais, nem os técnicos que sabem como fazer funcionar as fábricas. São os chefes da moeda, os patrões do dinheiro, os patrões financeiros. E aqueles que comandam as cidades são as mesmas pessoas, são simplesmente os especialistas na lógica de acumulação, ou seja, de extração do lucro da cidade imobiliária, fundiária. Eis quem são os que dominam.

É evidente que o socialismo em todo o mundo terminou. Terminou suas funções de representação das classes trabalhadoras, das classes subordinadas. Não existe mais para o socialismo a possibilidade de ser a representação do que hoje é a classe trabalhadora: a classe dos trabalhadores materiais, operários, e classe dos trabalhadores intelectuais, cognitivos. O fato de que cada vez mais pessoas vão à escola é uma coisa boa, mas deve-se ter claro que eles estão se tornando cada vez mais a força de trabalho fundamental. É ótimo que existam essas lutas nas escolas, mas é necessário relacionar esta luta à perspectiva de suas vidas futuras, em que estes estudantes serão operários. Se a vida se tornou um trabalho, deve-se compreender como se pode lutar contra o trabalho na vida

Porque este é um problema enorme. Não podemos partir da autonomia. A autonomia ainda não é uma posição política. Se a social-democracia acabou, deve-se encontrar um método para reinventar a esquerda. Eu sou contra aqueles que dizem que já não existe esquerda nem direita. Sempre haverá uma esquerda e uma direita. Uma direita fascista, no limite, e uma esquerda libertadora. Enquanto houver relações de força, existirá relações de luta. Hoje devemos dizer que a esquerda socialista acabou. Mas devemos reconstruir a esquerda, temos que erguê-la, e temos que fazê-lo juntos, determinar uma força, uma força material. Mas como fazer isso? A coisa é bem simples: trata-se de fazer autonomia. E o que significa fazer autonomia? Significa trabalhar com as pessoas, próximo da população. Não se pode falar disso sem estar próximo da população, sem fazer pesquisa. Quando eu era jovem, dizia-se ”que quem não fez pesquisa [trabalho de campo], não tem direito de falar”. Ou seja, ter contato direto com a classe trabalhadora, e a classe trabalhadora não é apenas aquela das fábricas, é a que está na fábrica, mas também nos transportes, nos hospitais, na escola, nos escritórios, etc. Então é necessário fazer pesquisa, ter contato.

A cada dia podemos nos perguntar ”quem são meus vizinhos?”, ”o que fazem meus vizinhos?”. Esse discurso sobre os vizinhos é formidável, porque significa organizar, participar. Mas organizar não é algo que vem de cima, e sim algo que vem de baixo. É a capacidade de dizer coisas juntos, de construir momentos em comunidade. E isso é algo absolutamente fundamental, isso é ”fazer autonomia”. E depois, devemos estudar quais são os momentos difíceis que encontraremos diante de nós. Construir um com o outro, se informar, ter a capacidade de se comunicar. Disseram [durante a assembléia] que existem escolas em luta, mas se as pessoas não sabem que estas escolas estão em luta, deve-se comunicar e superar a evidente falta de informação que o mundo capitalista determina.

É necessário também refletir sobre o uso da força. A força foi fundamental em toda organização da autonomia. Não existe a possibilidade de lutar contra os patrões, de lutar contra o capital se não temos a força suficiente para fazê-lo. Organizar a força significa fazer greves, organizar lutas, organizar manifestações. Ser capaz de responder às provocações deles, às provocações dos patrões e do Estado. Devemos ser capazes de juntar a todo momento o nosso conhecimento acerca do inimigo e a reflexão sobre os elementos que constituem a nossa força. Porque nós somos a força: a autonomia é isso, nós somos a força.

O movimento operário é essa coisa gloriosa que nos precede há anos e anos… há 150 anos. Como ele se formou? Ele se formou através das comunidades, das cooperativas, das associações, através das greves, através da greve geral, através do exercício da força. Depois, através da organização dos partidos. Nós ainda estamos nesta fase da autonomia. Devemos ser realistas: estamos no interregno, em um período de passagem entre a civilização tal qual a conhecemos e uma civilização porvir. Entre o capitalismo e aquilo que vem depois. Estamos em um período de crise, em que devemos inventar nosso futuro, nosso porvir. Mas trata-se de um período longo, e estamos aqui para construir essa coisa nova. Não devemos delegar o nosso poder aos outros, mas intervir de uma maneira direta.

Em tudo isso existe o porvir, não apenas o presente. Mas para isso devemos fazê-lo do interior. A autonomia não é uma palavra; é fazer, fazer, fazer sempre. Construir sempre, é essa a coisa. Um trabalhador que foi demitido da fábrica, é necessário ajudá-lo a voltar, se possível. Senão, ajudá-lo a ir para outro lugar, organizar com ele outras formas de cooperação. Fazer isso em todos os níveis. Somos inteligentes, somos trabalhadores cognitivos. Podemos criar, por exemplo, plataformas informáticas que nos ajudem a reunir pessoas em colaboração. Porque os patrões criam o Uber e nós não somos capazes de organizar coisas assim? Esta é a passagem à organização. Devemos ser capazes de utilizar todos os instrumentos que existem. A luta, a autonomia, não é somente lutar e destruir, é construir uma nova imaginação, uma nova narrativa. E, sobretudo, novos meios de produção, novas formas de produção.

Um programa é algo que se desprende das lutas, pois ele não é concebido previamente; é algo que emerge das lutas. Mas o que são, então, essas coisas que começam a surgir das lutas? Eu acredito que existem muitas coisas absolutamente fundamentais e que já emergiram, não apenas aqui, mas por todos os lugares onde existem essa novas construções de organizações revolucionárias. Isso não significa que fazemos a revolução com um fuzil. O fuzil é o momento em que eles usam a força. A revolução consiste em construir a força que não pode ser absorvida no capital. Então a primeira coisa é uma palavra de ordem: o comum. O comum vem antes de tudo, antes do mercado, e antes de todo o resto. Antes de tudo o comum é contra o privado. O comum é a forma na qual nós vivemos. Não existe possibilidade de apropriação capitalista e privada daquilo que nos congrega: as escolas, o sistema sanitário, tudo aquilo em que vivemos e em que nos construímos. Hoje, o capital quer absolutamente explorar e extrair o valor do comum que nós somos. Mas o comum vem antes da capacidade capitalista de se organizar. Uma cidade como São Paulo: quem a fez? Ela é horrível, não? Mas quem a constrói senão os encontros, o fato que as pessoas se juntaram? As pessoas, foram elas que construíram esta cidade, esta fábrica da qual são os [próprios] patrões. Compreender que o comum vem antes da organização capitalista da sociedade é um elemento absolutamente fundamental, irredutível. E isso não é apenas algo que nos consola, que nos sustenta, mas que devemos desenvolver nas proposições das lutas, nos programas, na nossa imaginação do porvir.

Quando falamos do comum, devemos começar por recuperar os elementos que surgiram das discussões e das experiências dos movimentos. Entre estes está a questão da renda universal para todos. Nesta sociedade totalmente unificada pelo capital e pela exploração do capital – pois quando dizemos capital, dizemos exploração – a vida deve ser defendida e a forma pela qual se pode, de maneira realista, defender a vida é simplesmente monetizando-a com um valor salarial. É brutal o que eu estou dizendo, não é uma bela concepção da vida. A vida é o tempo comprado pelo capital. Na vida, todos temos que ter um salário. Dizem que temos que ter um salário apenas se somos pobres. Não! Todo mundo deve ter um salário como um direito originário, como uma possibilidade de ser livre. Por outro lado, se conquistarmos essa renda universal, teremos muitos menos ricos, pois para criar os meios de pagar o salário universal tem que se retirar dos ricos. Podemos criar uma atividade social imediata: um salário incondicional é algo que corresponde ao sistema de trabalho. Não podemos trabalhar sem ser pagos, isso se chama escravidão. Na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, essa reivindicação é um dos conteúdos fundamentais das lutas autônomas. Algo que aconteceu na Zucotti Square, com as pessoas do Occupy [Wall Street], que aconteceu também na Espanha, com o movimento do 15M etc. Está por todos os lados. Devemos lutar por esta proposta, inclusive com todas as ambiguidades ao redor dela, para estarmos aí, mas com a força e a capacidade de se contrapor.

Em segundo lugar, a escola. Vejam bem, em todos os países nos quais o neoliberalismo comanda a escola tornou-se um elemento crucial. Em outras épocas eles não estavam nem aí para as escolas, faziam algumas para os operários e não passava disso. Hoje a escola é fundamental: deve-se fazer entrar na cabeça dos bebês que eles são construtores, empresários, pessoas que devem ter mérito para seguir em frente, que devem obedecer, e tudo isso. A escola tornou-se central; reformas estão sendo feitas por todos os lados. Eu não sei se as lutas que tem como lugar a escola no Brasil são lutas que já respondem a esse contexto mais geral. É evidente que existem diferentes posições e situações e que é perigoso unificar e homogeneizar as coisas, mas é claro que esta luta, ao redor da escola é uma das lutas presentes, imediatas e  fundamentais de hoje.

Outro elemento central consiste em relacionar a luta da escola com a luta daqueles que realizam trabalho cognitivo. Eles são muitos, e hojeem dia trabalham todos em computadores, realizam pesquisas no contexto empresarial, nas universidades, nas cooperativas, em qualquer lugar. Estes trabalhadores devem unir-se e mostrar que, enquanto os patrões pouco se importam com o conhecimento, eles têm a possibilidade de se apropriar dele. Apropriar-se do conhecimento, não da ideologia do mérito do empresariado. É necessário desmistificá-la a fundo, e é possível fazer isso, porque hoje, a grande maioria das pessoas que realizam trabalhos deste tipo (ao menos na Europa e nos Estados Unidos) estão reduzidas à precariedade. E não podemos nos deixar iludir pela ideia de que saber é comandar, que saber é conquistar uma posição social que te dá a possibilidade de ser poderoso contra os outros. Isso é algo que está completa e definitivamente terminado. Saber é poder, mas a coisa fundamental é que o saber pode se tornar um elemento revolucionário. Pois é sobre o saber, sobre a capacidade de imaginação, sobre a capacidade de juntar as pessoas, de formar comunidades, e então de fazer autonomia que tudo isso pode ganhar sentido.

Depois dos debates que tivemos aqui poderíamos falar durante horas e horas, pois surgiram uma série de assuntos de extrema importância. Mas as duas coisas que me parecem absolutamente centrais agora são, de um lado, a saída das mulheres de sua condição patriarcal, e fundamental, sobretudo, a questão negra. Eu pude observar na França, com o fim do fordismo, depois da grande crise do trabalho industrial, os operários árabes ou negros que foram ”guetificados” nas periferias da cidade, foram enclausurados sem trabalho nestas periferias, as chamados banlieues. E a esquerda faltou em absoluto quanto a esse fenômeno. Ela respondeu às necessidades da acumulação metropolitana em geral e os colocou para fora da cidade. Apartheid. Trata-se de um problema fundamental: na França é impossível reconstruir uma esquerda sem essas pessoas, que representam 10%, 12%, 15% da população.

Do Brasil eu conheço coisas muito bonitas, mas também coisas cruéis e muito duras… mas é evidente que é intolerável, sobre todos os pontos de vista (para mim é mesmo impossível dizer, é algo indizível) ver outra forma de colonialismo e de racismo escravocrata … para mim é algo impossível. E isso existe ainda no Brasil. E eu não tenho ideia de como se poderia sair desta situação. O significado de ser autônomo aqui deve ter, como ponto de partida a questão negra, o problema dos pobres e dos trabalhadores. Eles não são pobres indecentes, mas cidadãos e trabalhadores. Eu termino por aqui porque… eu juro, a cada vez que eu venho ao Brasil, esse país magnífico, não é mesmo? A cada vez que eu venho falar com camaradas absolutamente formidáveis, percebo neles uma certa reticência quando falamos destas coisas. Sim, muitas vezes. Eu lhes falo de minha experiência, vocês podem dizer que eu sou um imbecil que não compreende em profundidade a história do Brasil, mas é isso.

Tradução do francês por Fábio Zuker, antropólogo e ensaísta.

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