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RetomaR o per-curso

A palavra experiência vem do latim
experiri, provar (experimentar). A experiência é em
primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo
que se experimenta, que se prova. O radical é periri,
que se encontra também em periculum, perigo.

A raiz indo-européia é per, com a qual se relaciona antes de
tudo a idéia de travessia. Em grego há numerosos derivados dessa raiz
que marcam a travessia, o percorrido, a passagem:
peirô, atravessar; pera, mais além; peraô, passar atra-
vés, perainô, ir até o fim; peras, limite. Em nossas
línguas há uma bela palavra que tem esse per grego
de travessia: a palavra peiratês, pirata
. (J.Larrosa)

Iniciamos o curso Sociologia da Educação (Unifesp) na primeira semana de março. Lembro-me de conversar com os estudantes sobre as incertezas que se apresentavam diante de nós e os rumos do semestre. A pandemia covid-19 ainda era um problema que não havia nos atingido e as preocupações imediatas estavam mais concentradas nos ataques à universidade publica, nos cortes no financiamento da ciência e educação e na paralisação indicada para o dia 18 de março. Lembro-me de falar com xs estudantes que apesar das incertezas seriamos capazes de concluir o semestre. Incrível pensar em tudo que aconteceu desde então. Sinto que nossas vidas já não são as mesmas, o planeta já não é o mesmo. Então, como seguir com o mesmo curso?

Na primeira aula do curso, antes da interrupção, lancei uma reflexão inicial sobre a relação Educação e Sociedade, inspirada em algumas colocações do Ailton Krenak em sua conferência realizada em Salvador no final de janeiro de 2020. Como imaginar que aquela reflexão sobre “Como Adiar o Fim do Mundo?” se tornaria tão urgente e amplamente difundida nesse mesmo ano? Há mais de 500 anos enfrentando o fim do mundo, os povos indígenas são os maiores especialistas no assunto, e já faz muitos anos que nos alertam sobre o fim de um mundo tal qual o conhecemos.

Não poderia retomar o curso, no meio da maior pandemia que já vivemos, sem voltar àqueles palavras do Ailton Krenak. Sinto que já não podemos adiar algumas reflexões e conversas francas. Há um trecho naquela palestra de Salvador que o Ailton comenta sobre a educação das crianças. Recomendo a escuta deste fragmento de 11 minutos (2:15:00 – 2:26:00): https://www.facebook.com/watch/?v=119400642687358

Esse pequeno trecho inspira alguns argumentos que reorganizam o per-curso da disciplina Sociologia da Educação na Pandemia Covid-19 em 2020.

  1. O fenômeno educacional é o processo pela qual um determinado coletivo introduz um outro grupo de pessoas (geralmente mais novas) num mundo que lhe antecede ou que lhe é estrangeiro. Mas toda processo educacional é também a fabricação de um mundo.
  2. As causas da Pandemia Covid-19 evidenciam a relação que insistimos em negar entre o modo de vida da nossa civilização (branca, ocidental, racista, heteropatriarcal, antropocêntrica, extrativista, capitalista…) e a emergência das novas crises socioambientais, zoonoses na escala planetária e mudanças climáticas irreversíveis.
  3. Nossa educação (em termos socioculturais e epistêmicos) produz genericamente uma forma de vida não consequente, não implicada, não responsável pelos seus efeitos no mundo. Temos dificuldade em reconhecer e assumir coletivamente as relações de causalidade entre nosso modo de vida e os problemas que estamos produzindo. Ademais, abunda em nossa sociedade uma vasta indiferença pelo sofrimento e pela vida do outro.
  4. Do ponto de vista educacional devemos reconhecer, portanto, que aquilo que é ensinado às crianças sobre o nosso mundo é uma farsa. O quê e como ensinar? Como reproduzir um modo de vida que coloca em risco sua própria existência no planeta? É essa a constatação do Ailton Krenak ao narrar a luta socioambiental do movimento internacional de crianças e jovens. Elas estão dizendo que nossos governos não cumprem seus compromissos, que os adultos não assumem a responsabilidade pelo futuro do mundo em que as crianças viverão, e os empresários não se interessam pela sustentação da vida intergeracional.

O campo da Sociologia da Educação tem como principal centro problemático a relação entre a reprodução e a mudança social: em que medida e sob que condições (processos, instituições, culturas, políticas, classes etc) o fenômeno educacional reproduz a sociedade que o engrenda e/ou cria possibilidades de mudanças. No percurso dessa disciplina pretendemos olhar para essa tensão sob alguns recortes específicos. Porém, sempre partindo dessa constatação desagradável e urgente. Não podemos mais adiar as perguntas difíceis. Desejamos habitar o acontecimento covid-19 naquilo que ele nos inspira a nos responsabilizarmos pelo mundo que criamos. Como pensar a educação numa perspectiva crítica e para além do antropoceno/capitaloceno? Como imaginar e criar outras mundos que escapem da “nova normalidade” que guarda outras pandemias porvir?

Sobre o curso (início 5 de agosto): vespertino 15hs; noturmo 19hs.

Programa e recursos: https://pt.wikiversity.org/wiki/Sociologia_da_Educa%C3%A7%C3%A3o_na_Pandemia_Covid-19

Canal de difusão no Telegram: https://t.me/socioeduca2020