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Notas sobre Domesticidade – Investigação II

texto produzido a partir das notas coletivas da conversação realizada na Zona de Contágio em torno do tema “Domesticidade”.

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A experiência pandêmica nos proporcionou o colapso sincrônico entre as escalas planeta-casa-corpo. Fronteiras e divisões que pareciam fixas se atualizam e se reconfiguram; revelando sua falácia e artificialidade. O contágio, o transbordamento, as interdependências estão por toda parte. A situação nos convoca a inventar outros corpos, outros regimes de sensibilidades, outras formas de ser e conhecer. A suspensão inicial da rotina, nos primeiros momentos da pandemia, visibilizou a fina trama das infraestruturas das cidades, da casa e dos trabalhos invisíveis que sustentam a vida comum. Com a  continuidade da situação pandêmica, a organização da vida previamente existente se intensifica através de velhos e novos dispositivos de governo da nossa existência. Entre o mito da casa-refúgio e o vivido na casa-fábrica-escola-prisão há uma pletora de experiências com os mecanismos de controle mas também de criação de novos ritmos, desvios, alianças e insubmissões: devir-selvagem. A mistura corpo-casa-planeta cria novos conflitos sobre velhos divisores. Queremos descrever e narrar as práticas pelas quais o tempo de trabalho e o tempo de não-trabalho torna-se cada vez mais indistinto; contar como o público-estatal e o privado-capitalista se organizam na trama casa-família-estado-corporação; Que corpo a casa faz? Como a casa se torna uma rígida fronteira que separa o “dentro” do “fora”?  investigar as atualizações da monocultura – plantation – em arquiteturas e formas de habitar que produzem o regime heterossocial, seus corpos, seus funcionamentos generificados; sentir como o desenho da forma-cidade, suas infraestruturas e assimetrias se manifestam a partir de uma experiência onde morar já não é a mesma coisa.” 

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Casa e monocultura, casa e plantation estão ali na mesma paisagem.
O doméstico não é só o âmbito do lar, da casa. É também quando como falamos dos animais que são domesticados. Doméstico vem de domos – domínio – é uma forma de controle patriarcal sobre os corpos das mulheres, dos animais, etc.  
Uma das coisas principais pra mim é uma desromantização do lar. Parece que fica inviável aquele sonho do american way of life, a concreto espacial do american way of life. No primeiro momento da quarentena houve a possibilidade do ficar em casa, ficar quieto em casa; mas logo veio a avalanche do que já era essa sociedade. Seguimos trancados em casa, mas ainda reproduzido tudo o que já era ruim dos nossos modos de vida.
Enfim, eu só queria botar pilha na importância da desromantização.   O discurso patriarcal romântico sobre o que uma casa, um lar, ruiu como uma casa que desmorona.
Pra quem a casa era romântica? Parece que todo mundo já sabia dos limites.
Para mim, a casa era um descanso da atenção devido a saturação do que é estar na rua. E é um descanso da atenção por conta do seu ritmo repetitivo, o conhecido gera um conforto.
Diante das diferentes sensibilidades, o quanto o corpo pode aguentar (nisso de estar sujeito ao tudo do fora)? 
Fiquei pensando sobre o que é não ter a casa? E uma das perguntas que eu sempre ouvi é “por que será que ele não volta pra casa? E vou partilhar uma das falas do meu irmão: – “eu posso tá numa pensão no centro, em algum albergue. E ai eu me levanto as três da manhã, e vou para o Terminal Bandeira, que foi o primeiro lugar que eu dormi e me senti seguro foi o Terminal Bandeira”. Então é uma volta pra casa no Terminal Bandeira, as três da manhã quando ele não consegue dormir.  
E  antes de terminar minha fala, vou falar do pikachu,  que é um pokemon não domesticável, que não entra nem fodendo na pokebola, ele fica com o Ash pela amizade. A relação do Ash com o Pikachu não é de domesticação, é de amizade. Assistam!! 
Vou puxar um outro fio: pensar a domesticidade em outros lugares além da casa.  A domesticidades está em outros lugares, assim como a casa.  Como as configurações da domesticidade se constituem nas nossas relações com o mundo, com o trabalho? A pademia nos ajudou a revelar as tramas que organizam a cidade, pois a domesticidade opera uma partilha do mundo, um arranjo de assimetrias, divisões, que são generificadas, racializadas. O que é necessário para se manter uma casa no contexto da pandemia?
Pra muitos está claro que a casa não é o refúgio, mas o lugar de conflito. 
Mas é essa relação da casa com o mundo. Como essa forma casa na cidade, se apresenta como imagem (ideológica) de uma célula da autonomia, da autossuficiência e independência. 
Um márcio, um homem em situação de rua, contou pra gente que ele estava com muita saudade dos filhos, e ele falou que não conseguia recuperar essa relação com os filhos depois que ele ficou desempregado e foi morar na rua. Porque ele não tinha mais nada a oferecer para eles… 
A domesticidade é a maior produtora dos corpos e gêneros. 
Pensar em casa é pensar quem pode morar onde e suas articulações com o mercado imobiliário e o capitalismo financeiro. 
A dominação,  a  domesticação  e  o  amor  estão  firmemente  entre-laçados.  A  casa  –  o  nosso  doce,  familiar  e  seguro  lar  –  é  onde  todas essas dependências intra e interespecíficas atingem o auge da saturação. Por mais prazeroso que seja, talvez essa não seja a melhor ideia para uma vida multiespécies na Terra. Considere, ao invés disso, a  abundante  diversidade  que  margeia  as  estradas.  Ou  considere  os cogumelos. 
reivindicação de boa parte do movimento lgbt é a moradia. viver bem, morar bem.
a casa é uma invenção contra ecossistema.
casa como lugar onde habitam outros seres.
V.Wolf – “um teto (quarto) todo seu”, onde se discute espaços de autonomia de pensamento.Também penso na reinvenção da domesticidade feita por pessoas LGBT nas Houses, como uma forma de criar outras relações.Também fiquei pensando na distinção entre o público e o privado, que organiza o modo como pensamos a domesticidade. E como essa distinção não funciona em outros contextos, como por exemplo, aqui onde eu moro, no sul de Minas, no interior. Dá para pensar a casa desconectada da domesticidade? O que acontece com a casa sem a domesticidade?
Essa domesticidade resiste à ausência de cidade? 
Há uma perda muito qualitativa da experiência urbana que parece estar em curso. 
Fico pensando no terreno baldio, num devir-casa. 
Baldio vem do Árabe, que significa inútil, que não existe para a produção, não existe para desempenho. 
Meu vô era desses que entra num terreno baldio e plantava pra eles e pras pessoas ao redor. Chegou, plantou!
A pandemia me fez pensar naquela frase: “takes a village to raise a child”, e de repente, em quarentena, com dois filhos pequenos, me perguntei: “cadê minha village?”
Toda a casa tem uma mulher lá, sustentando o trabalho da limpeza, com os filhos, com os corpos. Eu acho muito legal trazer a figura da mulher para pensar na domesticação da vida. 
Uma cigarra apareceu no meu dedo. Veio fazer morada aqui no meu dedo.
Uma tese que orientei – a Experiencia da maternidade em Recife – e que fala da experiencia da maternidade no Brasil, evocava a idea de maternidade em rede. Ou seja, no meio popular, a família clássica, por uma série de razões, as mulheres funcionam pra cobrir umas as outras para cuidar  das necessidades das crianças, elas funcionam em rede. Tanto a questão do afeto, responsabilidade, uma serie de estratégias de sobrevivências. Dissociar o que é a experiencia da classe média, e do que são outras experiências de organização da experiência da casa.
Domesticidade tem aparagens muito variadas.
Experiências atravessadas por dinâmicas, muito diferenciadas. 
Concordo com você. Mas de qualquer maneira é uma rede de mulheres que lidam com essa experiência. 
Nem sempre, você tem historia dos novos pais, o impacto do movimento feminista, mais de quarenta anos do movimento feminista. Agora, na classe média tem a figura dos novos homens, dos novos pais, eles não são estáticos. Eles aprendem a gostar de criança, a gostar de cozinhar, etc.
Esvaziar o ralinho é parte do lavar a louça. O ralinho é demarcador de níveis de participação.
Isso não é universal. A heteronorma nem sempre se replica na roça. A imagem da roça como modelo arcaico-patriarcal, é nada mais que a visão da classe média para a roça. E que existem caminhos outros nessa forma de cuidado. 
Dentro da configuração ocidental, na Grécia esse modelo de cidade é modelo da pólis, que dentro dessa configuração política, a casa, a mulher e a infância, são excluídas dessa estrutura política. Lembrando do Henrique falando dos arranjos, a molecada aqui gosta de skate. E a cidade não é a mesma pra quem anda de skate. Um banco, um corrimão ganha outra forma. Há toda uma filosofia, um uso implicada no role de skate da cidade. 
Interessante, que com o skate isso fica bem mais claro, dos usos comuns. Mas a impressão que eu tenho é de que cada atividade diferença adicionam camadas  à experiência da cidade. Ou complexidade a ela… O corpo também passa por essas “incrementações”. Sobre a domesticidade, eu tava pensando no próprio processo educativo, eu percebi o quanto eu fui de uma maneira domesticada nesse sistema de ensino, de ir pra escola, fazer trabalho, biblioteca, de tal forma que não ter uma sala de aula é muito louco, pensar essa capacidade de adaptação. 
O que é uma casa? E eu pensei no terreiro. E o terreiro é dentro da casa da minha vizinha, mesmo ela tentando separar. E isso muda completamente a rotina da casa, não só nos níveis mais materiais. 
Parece que tem uma implosão do público e do privado. Acho que a Angelina pensa numa coisa crucial assim, que essa noção de casa é uma experiência de um grupo de consumidores de classe. 
Como é pensar a domesticidade também em outras realidades, outra organização?
Na etnologia ameríndia, a categoria domesticidade não é muito usa, mas domesticação sim. Nos mundos ameríndios tem algo interessante que é uma separação entre ação e agente. O agente não é aquele que “realiza” a ação.
Também tem algo bonito nos mundos ameríndios é que é uma espécie de radicalidade da consubstancialidade. Uma rede de parentesco é uma rede de gente que pensa uma na outra e pensar é cuidado. Os ameríndios fazem parentes pensando neles, e pensar é compartilhar comida, compartilhar uma mesma casa, estar junto. E em muitos idiomas indígenas, pensamento é sangue e pensamento, de fato, é o que circula, não é algo que fica no cérebro. Então fazer parentes é compartilhar sangue/pensamento. 
A domesticidade também foi uma forma da colonialidade organizar as relações de parentesco. Ela permitia a separação entre os filhos legítimos e ilegítimos dos homens colonizadores (e isso permitiu, como fala o Mbembe, uma experiência de um gozo perverso por parte dos homens colonizadores). 
Um dos desafios de pensar a domesticidade, portanto, é pensar no que a gente reproduz, quando nos reproduzimos. Há uma comunidade mapuche sexo-dissidente que diz: “Eu e minhas irmãs não vamos nos reproduzir, mas pensamos em como continuarmos”. Isso é uma reflexão bastante importante. 
Pensando agora no que você disse, Bru,  eu li hoje, que 7 entre 10 estupros acontece dentro de casa, por familiares.  Faz a gente se questionar que casa é essa, que parentesco é esse? 
1/3 das violencias registradas acontece dentro da familia. A familia é um lugar de produção de violência significativo. 
Alimentação como convite da natureza para migrar de casa, de corpo em corpo… Ninguém na terra tem uma casa. 
Ouvindo Lucas e Bru, parece que a linguagem não bate. Os povos nipônicos que vieram para o Brasil, nunca foram considerados indígenas, mas minha avó nasceu na Hokkaido colonizado, mas ainda sim numa aldeia do povo Ainu. Ela dizia: O império não gosta da gente. Eu não sei muito discernir, o que é ainu, o que é japonês; o que é ocidental em mim mesma. 
Depois de pedalar até a casa do meu pai eu me joguei na grama, e fiquei pensando sobre treinar o corpo na carne da grama, da aranha, da ancestralidade, etc.
Essa língua ameríndia-nipônica é evitar a se deixar subordinar por essa linguagem ocidental. 
Um agenciamento de si para o outro e não o contrário, a melância me ensina a ser carne. 
Vou puxar outro fio de conversa. O pessoal da arquitetura, que é muito bom em inscrever de uma maneira as normatividades em concreto. Nessa trama de casa-corpo-planeta, a cidade é um diagrama de como essas coisas se organizam e permite a gente se defrontar com questões do capitoloceno, antropoceno e das plantationcenos. E pensar como o que parecia um momento de reflexão no começo da pandemia e como parece que com o tempo ficou que a casa-cidade desorganizou nossas formas de responder à situação pandêmica.
Mas também é importante pensar sobre as muitas redes emergiram e avançaram nesse contexto, para investigar essa forma casa-cidade.
Eu tinha uma coleção de imagens dessas casa que tem estruturas muito diversas, pois não foram projetadas por engenheiros, arquitetos.
A história do samba ajuda a pensar espacialidades outras. 
Saiu uma pesquisa que mostra que mais da metade da população de São Paulo quer sair da cidade.
Também precisamos lembrar que habitar outros espaços que não a cidade, para nós que vivemos na cidade, nem sempre é muito fácil. 
Esse ponto nos ajuda a pensar na necessidade de não desmaterializarmos os processos, os corpos, as experiências quando investimos na necessária tarefa de desessencializar e desnaturalizar. Nossos corpos já estão moldados pela arquiteturas da cidade, e as outras arquiteturas, como as arquiteturas farmacopornográficas de que fala o Preciado. E isso talvez nos ajude a pensar nossas resistências, mas tbm sobre como certos corpos parecem se tornar mais disponíveis para as variações, para as mudanças.