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Investigar dispositivos, controle e mobilização total em tempos de pandemia

por: tramadores

A incandescência histórica tem a virtude de aumentar a legibilidade estratégica de uma época.   Tiqqun

La cuestión suprema ya no es la extracción de plusvalía, sino el Control. El nivel de extracción de la propia plusvalía ya no indica sino el nivel de Control que es localmente su condición. El Capital ya no es sino un medio al servicio del Control generalizado. Y si aún existe un imperialismo de la mercancía, se hace sentir ante todo como imperialismo de los dispositivos; imperialismo que responde a una necesidad: la de la normalización transitiva de todas las situaciones . Tiqqun

Seguimos tramando zonas de confluências  entre os fios de uma ciência dos dispositivos e uma ciência de retomada.

Para a próxima Conversação Febril (21/05 – 19hs) gostaríamos de dar mais atenção para o acontecimento covid-19 como um experimento de novas técnicas de controle. Cartografar os movimentos do poder que não mais restringe, constrange, impossibilita, mas atua fazendo funcionar: mobiliza, engaja e conduz. Dispositivos de desempenho nos exigem provas de eficiência e sacrifício em longas jornadas. Novas formas de medir, qualificar, avaliar – a cidadania sacrificial também é policial e gerencial: todos vigiam, todos denunciam, todos avaliam os “serviços” e dão sua nota, todos participam e se sentem convocados em “fazer sua parte”. A vida  imersa dentro do trabalho, o trabalho como forma permanente de auto-empreendedorização, mobilização total, uma sociedade de “capital humano”, vida convertida em “administração” e concorrência.

Os detratores agora são os improdutivos, vagabundos, aqueles que não são eficientes o suficiente, irresponsáveis. Pílulas para dormir, pílulas para acordar, muitas formas de neutralizar os sintomas. Uma nova arquitetura algoritmizada funcionando para ordenar, permitir as “melhores decisões”, as “melhores buscas”, evitar os imprevistos, os excessos, os erros. Resultados, relatórios, multitarefas. Ninguém precisa sair de casa agora: está tudo aqui na nova paisagem doméstica-produtiva-reprodutiva e de consumo que se tornou o “lar”.

Nas universidades e escolas, tecnologias coorporativas mediando formas de aprendizagem e  produzindo ambientes educacionais – o que é, de fato, uma “aula”? O que é, de fato, uma “produção relevante”? O que é, de fato, uma “experiência”? O que é, de fato, uma “avaliação”?

No chão da fábrica: trabalhadoras de saúde e suas tecnologias de cuidado e de guerrilha atuando pela desobediência, defendendo a saúde coletiva contra a necropolítica do Estado; 

No chão da fábrica: escolas pensando sobre sua existência e reorganizando a possibilidade de uma comunidade escolar que está para além da sala de aula, mas acontece nessas práticas de cooperação, de viver junto, de sustentar um desejo coletivo atuando pela desobediência ao que ordena o Estado.

No chão da fábrica: os trabalhos mais mal-remunerados, mais precarizados, ligados aos cuidados são o que mais importam agora.

No chão da fábrica: as ruas da metrópole e os vagões lotados de ônibus e metrôs, os corpos pretos, precarizados, são os que habitam a zona do sacrifício e se deslocam para que a produção não seja interrompida, para que as infraestruturas permaneçam funcionando.

No chão de fábrica: constatamos que a família nuclear biológica heterossexual é o que amortece todo o colapso ao mesmo tempo que percebemos os limites de suas formas patriarcais, binárias, suas tecnologias de domesticação e controle que também fazem o gênero “funcionar”, “desempenhar”. Somos capazes de viver de outra forma?

O poder quer nos convencer que o “desemprego mata mais do que a pandemia” – no fundo, isso revela com total transparência o fato de que o trabalho se tornou uma chantagem e que a mobilização total é a única técnica de governo. 

O medo do poder reside na nossa capacidade de poder viver sem ele: deponer los poderes que nos gobiernan coincide o tiende a coincidir con un hacer sin ellos, y viceversa.

Para adensar essa conversa gostaríamos de investigar, descrever e analisar coletivamente algumas manifestações e materializações dos dispositivos de controle em nossas vidas durante a pandemia. Como percebemos, sentimos e narramos o que se apresenta como atualização das formas de controle do trabalho, da vida, dos cuidados, das relações, dos afetos, dos corpos. Como funcionam esses mecanismos, suas solicitações, técnicas, formas de mensuração e avaliação? Como somos convidadas a nos criar, a fabricar um “eu” que funcione?


*Textos, audios, videos, fotografias podem ser compartilhados aqui neste post na forma de comentários: https://www.tramadora.net/2020/05/15/investigar-dispositivos-controle-e-mobilizacao-total-em-tempos-de-pandemia/
Sua postagem se tornará pública para outrxs pessoas que por lá passarem também.


*Para inspirar esse percurso e a Conversação Febril do dia 21 de maio, as 19hs, indicamos alguns textos:

DELEUZE, Gilles. Post-Scriptum sobre Sociedade do Controle In: Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2007.

RODRIGUES, Pablo Manolo. Algoritmos y biomoléculas, 2020

PRECIADO, Paul. Aprendiendo del virus, 2020   Tradução:  https://medium.com/textura/aprendendo-com-o-v%C3%ADrus-1f8542d3ed78

Seguimos!

imagem do post: Sea Serpent Swallows Ship. Deccan. Bijapur, 1670.

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3 comentários em “Investigar dispositivos, controle e mobilização total em tempos de pandemia”

  1. Caio Maximino de Oliveira

    (Faz tempo que quero me conectar a esse laboratório. Iniciei essa reflexão ontem, em um período de insônia, mas de repente brincar de chá com minha filha se tornou muito urgente. Quero continuar a reflexão, na direção de entender o papel da ansiedade para aqueles que desejam voltar ao trabalho, e de aumentar a conversa sobre ansiedade como ferramenta de controle e desmobilização. Para não parar o processo logo no começo, resolvi compartilhar logo o que já escrevi)

    A etimologia da palavra “ansiedade” é diversa. Conta a história da nosologia que o termo foi introduzido nas clínicas psi de língua inglesa pela tradução do termo “angústia” (“angst”) para “ansiedade”. A palavra “anxiety” aparece na língua inglesa no século XVI, com pelo menos duas raízes atribuídas: do latim anxietatem (cujo nominativo é anxietas), e do inglês antigo angsumnes.
    Outros aproximam angústia e ansiedade a partir do termo anguere, “apertar”, “sufocar”. A raiz *angh- vem do proto-Indo-Europeu, e tem o significado de “apertado, dolorosamente constrito”.
    A referência ao sufocamento não me escapa.

    Na história da nosologia psicopatológica eurocêntrica, a ansiedade e a angústia caminham ao lado da melancolia por todo percurso até o séc. XIX. Os franceses que sistematizaram a nosologia na Era … estavam preocupados com a loucura como desrazão, e os transtornos das emoções pouco aparecem em suas obras. Na Alemanha do séc. XIX, com a ascensão de uma burguesia industrial como classe dominante, surge a demanda de um tratamento individualizado, privado, especial, para o sofrimento psíquico. O burguês não quer se juntar ao populacho nos hospitais, e reivindica para si um cuidado íntimo. Surgem as primeiras casas de repouso e clínicas particulares – e, com elas, um foco renovado nos transtornos das emoções (Gemüt).
    No século seguinte, a ansiedade ganhará status privilegiado nesse esquema de coisas. A ansiedade será uma espécie de sinal de um homem trabalhador, e, nos EUA da década de 1950, é uma medalha da sociedade de consumo e da ética do trabalho. Numa espécie de “luta de classes às avessas”, o sofrimento psíquico causado pelo trabalho e pela exploração, e o próprio valor do trabalho, são tomados não mais como crítica do capitalismo, mas como sua justificação.
    A ansiedade certamente não é um afeto novo, portanto. Mas, se antes a ansiedade se expressava no conflito entre os afetos ativos e criadores e a exigência repressiva do mundo do trabalho, a ansiedade agora investe todo o mundo social e a vida afetiva, ao invés de se concentrar somente no libidinal (Karatzogianni and Robinson, 2010).
    Quero investigar aqui três linhas de aprofundamento das ansiedades na pandemia: como o isolamento promove uma ansiedade da morte e da dissolução da comunidade; como a precariedade promove uma ansiedade da fome e da incerteza; e como a consciência triste promove a ansiedade do retorno

    A ansiedade do isolamento
    Se há algo que define, em escala global, a subjetividade dos que estão em isolamento, esse algo é o medo. Principalmente em lugares, como o Brasil, em que as ações propriamente de saúde são precárias, o medo no isolamento é um medo duplo de morrer e de ver dissolverem-se as comunidades. Mas também a ansiedade do mundo hiper-presente do neoliberalismo, subsumido na forma do trabalho eterno.
    José Gil identificou um afeto de medo como a dimensão subjetiva mais fundamental da experiência da pandemia: “Não é o simples medo da morte, é a angústia da morte absurda, imprevista, brutal e sem razão, violenta e injusta. Rebenta com o sentido e quebra o nexo do mundo.” (https://www.publico.pt/2020/03/15/sociedade/ensaio/medo-1907861)
    Para os que estão em isolamento, os mecanismos que incidem fortemente para produzir um afeto reativo de ansiedade são aqueles associados à tele-presença e à obrigação de comunicabilidade. Paul Virilio (1994) teorizava a tele-presença como a presença imediata de diferentes espaços – da vida doméstica, da educação, do trabalho, do lazer – uns aos outros. Parte importante da racionalidade neoliberal, na “comunidade pandêmica” a telepresença se centraliza: “Na comunidade pandêmica, a vida social, a vida laboral, a vida escolar e a vida política, todas se contraem na vida doméstica antes de explodirem na vida em rede. Tudo o que tinha conseguido escapar fugitivamente à captura digital de redes, lamentavelmente, submete-se e conecta-se.” (Nil Mata Reyes; https://coletivoponte.noblogs.org/post/2020/04/10/a-comunidade-pandemica-nil-mata-reyes/).
    A tele-presença generalizada generaliza a vulnerabilidade ao olhar do Outro. Todos os espaços que tinham conseguido escapar à captura dos desejos pelo universo do trabalho agora se submetem e conecta-se.
    Também é característica da racionalidade neoliberal a obrigação de comunicabilidade. Bifo (2009) já havia demonstrado isso: as pessoas são compelidas a se comunicar, ou ao menos a estarem comunicáveis e “em rede” no sistema neoliberal. Entretanto, essa obrigação restringe a comunicação a “canais autorizados”, vias sistematicamente mediadas de informação: o WhatsApp da firma, a performance nas redes sociais, de maneira que, mesmo fora do campo do trabalho, nenhuma via é comunicação em sentido estrito (de troca).
    No isolamento social, a ameaça ao incomunicável é a destruição de todas as conexões sociais. Para manter minhas conexões com minha comunidade, corro o risco de estar comunicável com o patrão.
    Assim, o assalto final do mundo do trabalho aos aspectos da vida livre ameaçam, na pandemia, uma situação paradoxal: não me é permitida a solidão (Barthes: “Acídia (moderna): quando já não se pode investir nos outros, no Viver-com-alguns- outros, sem poder, entretanto, investir na solidão → O dejeto de tudo, sem nem ao menos um lugar para esse dejeto: o dejeto sem lata de lixo”), nem a comunhão.
    O próprio isolamento social apresenta consequências fundamentais para a ansiedade. A neurociência social têm mostrado que o isolamento social produz efeitos transitórios ou crônicos (MASI et al., 2011; SHA’KED; ROKACH, 2017). Os efeitos crônicos estão associados a depressão e suicídio, maiores taxas de alcoolismo, e baixa qualidade de sono, todos importantes fatores de risco para transtornos mentais (CACIOPPO; HAWKLEY, 2003; HAWKLEY; CACIOPPO, 2003). A solidão produz ainda diversos efeitos psicofisiológicos, cardiovasculares, imunes, e endócrinos, incluindo níveis mais altos de atividade autonômica, piores indicadores de imunovigilância, e níveis mais altos de hormônios do eixo neurovegetativo (UCHINO; CACIOPPO; KIECOLT-GLASER, 1996).
    Claro, nenhum desses efeitos foi produzido magicamente pelo vírus. A pandemia só agudizou efeitos biopolíticos que já estavam na ordem do dia da racionalidade neoliberal. O isolamento e a alienação do Outro já estavam no cardápio: qual é a forma ontológica da racionalidade neoliberal senão esse sujeito monádico, empreendedor de si mesmo, em competição com todos os outros sujeitos? Reforçado por mecanismos de administração de desempenho, constantemente correndo sem sair do lugar, buscando alcançar metas de desempenho irreais e que requerem sobre-trabalho para vencer na vida. A internalização subjetiva desses mecanismos leva à auto-vigilância e à associação do self com métricas de qualidade. “O neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é em primeiro lugar e fundamentalmente uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados. A racionalidade neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação” (DARDOT; LAVAL, 2016). É sobre esse sujeito, agora atomizado, que o distanciamento social irá incidir, ameaçando dissolver o que resta de comunidade.

    A ansiedade da precariedade
    No universo do precariado, a ansiedade não está entre a morte de si e a morte da comunidade, mas no dilema entre se expor a infecção e morrer de fome. À espera deum auxílio emergencial que nunca vem, os quase 35 milhões de trabalhadores precários (“autônomos”) no Brasil não têm saída desse dilema a não ser o afeto reativo da ansiedade.
    Para os socialmente marginalizados, portanto, a dimensão extra-subjetiva da ansiedade é o medo de perder a subsistência. A precaridade é uma “insegurança não-autodeterminada” que atravessa as dimensões do trabalho e da vida cotidiana, e mobiliza a insegurança para impor a normalização e tratar as pessoas como descartáveis. Opera, portanto, tornando a vida das pessoas “contingente ao capital” (Angela Mitropoulos, http://www.metamute.org/en/Precari-us). Bifo argumenta que a precariedade leva a um estado de constante excitação corporal sem possibilidade de liberação, uma impossibilidade (socialmente imposta) de relaxamento (Precarious Rhapsody). O trabalho precário e a gig economy são caracterizados pela perene administração do estresse, baseada na descartabilidade (Kim Moody, Workers in a Lean World). O entregador do iFood, o motorista de Uber, e o camelô todos têm em comum a exigência, imposta pelas demandas da sobrevivência, de se manter correndo sem se deslocar.
    Chama a atenção o discurso de que devem sair da quarentena aqueles trabalhadores que são indispensáveis, quando a maioria das pessoas que continuam trabalhando fora de suas casas são caracterizadas justamente por sua dispensabilidade e descartabilidade. Por “dispensabilidade”, A. T. Kingsmith refere o fato de que, na sociedade neoliberal, uma grande parcela da população não pode esperar os direitos básicos de não sofrer violência sistemática, expropriação, alienação, ou trauma. Essa descartabilidade sem limites cria um sentimento perpétuo de impotência.

  2. Sobre poder, controle e contestações: anotações provisórias.

    Vou direto ao ponto.

    Pensar o poder é, naturalmente, identificar as novas formas através das quais ele se exerce – o controle hoje, em contraposição à disciplina ontem. Mas é também entender que o poder só é viável, quando o uso da força se apoia em algum grau de legitimidade. O poder econômico se legitima pela promessa da participação; o poder de Estado – e tal é seu fundamento – pela promessa de proteção. Por isso crises sanitárias como a que estamos atravessando (do mesmo modo como o terrorismo antes) trazem o risco – quase a certeza – de um aprofundamento do controle e de uma restrição às liberdades individuais.

    O controle faz parte do nosso quotidiano. Aprendemos a conviver com ele. No mais das vezes, é usado por plataformas digitais para captar o desejo e estimular o consumo. Cada um de nós se acredita autônomo em relação ao que escolhe consumir, em função dos meios de que dispõe ; por isso o fenômeno é julgado inócuo. Sabemos que existe, mas não prestamos muita atenção a ele. As coisas no entanto se complicam quando essas formas de controle são usadas com finalidades políticas. O debate que se seguiu à eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, sobre o facebook como fonte de dados pessoais para uma empresa desde então famosa, a Cambridge Analytica, alertou uma parte da opinião para esses riscos.

    Thomas Huchon, documentarista francês, rastreou personagens e mecanismos mobilizados durante as eleições americanas para levar Trump à vitória. (Versão legendada em português na plataforma Vimeo com o título “Driblando a Democracia”: https://vimeo.com/295576715.) Tudo isso é bastante conhecido. Alguns elementos de informação, no entanto, merecem destaque nesta discussão. A Cambridge Analytica foi uma empresa criada em 2012 nos Estados Unidos com financiamento de um multimilionário americano, Robert Mercer, associado a um personagem chave da extrema-direita estadunidense, Steve Bannon. Sua origem no entanto é muito mais antiga.

    A matriz da Cambridge Analytica estava baseada em Londres e foi criada no começo dos anos 90. Chamava-se SCL Group – Strategic Communication Laboratories. Organizava operações psicológicas (“Oppsy”), para responder a necessidades de uma clientela diversificada – militar, comercial, eleitoral – em busca de influenciar opiniões públicas de diferentes países. Entre seus clientes históricos figuravam a OTAN, o Ministério da Defesa Britânico, a NSA e o Departamento de Estado Americano. A serviço desses clientes, o SCL Group interveio no Afeganistão, na Nigéria, em Gana e nas Caraíbas. O Brexit, em junho de 2016, e as eleições americanas em novembro do mesmo ano, foram suas primeiras experimentações políticas conhecidas em países do primeiro mundo.

    Com o escândalo desencadeado pelas revelações de Christopher Wylie, tanto a Cambridge Analytica quanto o SCL Group encerraram rapidamente suas atividades. Mas recriaram, no mesmo endereço londrino, com a mesma direção e os mesmos associados americanos (a fundação da família Mercer) uma outra empresa – a Emerdata’s. É pouco provável que seus antigos clientes – instituições chaves no campo das relações internacionais – tenham renunciado aos serviços especializados que a empresa é capaz de prestar.

    Muita coisa foi dita sobre o papel que teria desempenhado, na campanha presidencial de Jair Bolsonaro, o antigo diretor de campanha de Donald Trump, Steve Bannon, afastado da Casa Branca em agosto de 2017, depois do escândalo de Charlottesville. É pouco provável que os métodos de rastreamento individualizado de públicos potencialmente sensíveis, que caracterizaram o trabalho da Cambridge Analytica na campanha de Trump, tenham sido empregados da mesma maneira no Brasil. Mas não é isso que importa. A dimensão altamente sexualizada da campanha Bolsonaro, visando um público evangélico conservador (o público das “mamadeiras de piroca”) através de disparos maciços de desinformação em grupos de WhatsApp, inscreve-se perfeitamente na lógica das “Oppsy” que fizeram a fortuna do antigo grupo SCL e da Cambridge Analytica, hoje Emerdata’s.

    É essa relação entre controle de dados pessoais via dispositivos de comunicação, proteção dos cidadãos como obrigação do Estado e risco de manipulação política de públicos específicos, que a crise do Corona Virus está colocando, mais uma vez, na ordem do dia no mundo inteiro. No Brasil de Bolsonaro, esse risco é pelo menos tão preocupante quanto em outros lugares. E tanto mais na medida em que parece ter passado desapercebida a informação da Folha de S. Paulo, esta semana, de que os Estados Unidos ajudariam o Brasil a aplicar métodos de rastreamento de pessoas infectadas para combater a pandemia no país.

    As democracias liberais, hoje em crise, pautam-se pelo princípio da delegação de atribuições de deliberação e governo a mandatários, em nome de uma opinião pública esclarecida que os escolhe e elege. O estatuto dessa opinião pública vem sendo substantivamente alterado no contexto das sociedades de controle. Discussão em pauta e em aberto.

    ***

    Pensar o poder é também pensar as formas através das quais ele é contestado. Em verdade, o poder só se revela em toda a sua complexidade através da contestação de que é objeto. Intelectuais são vocalizadores indispensáveis, mas não mais que vocalizadores, de uma dinâmica social e do que está sendo gestado. Hoje trata-se de sobreviver à catástrofe, mas também tentar pensar mais além da catástrofe. Pensar um futuro em disputa. Nesse sentido interessou-me muito o vídeo, postado como contribuição à Zona de Contágio, da conversa entre Yayo Herrera e Joan Benach – ela presidente do Foro Transições, na Espanha, ele pesquisador da área da saúde. São duas horas que valem a pena.

    A conversa registra um conflito em curso entre uma lógica solidária e uma lógica linchadora – conflito que deve continuar na pós-pandemia. Ao paralisar o planeta, o vírus abriu uma brecha importante para a lógica solidária, até então esmagada pelo imaginário neo-liberal. Hoje se trata de penetrar na brecha para salvar o planeta e preservar a vida.
    Uma hipótese a explorar – e pelo menos um texto publicado neste espaço faz isso http://lobosuelto.com/capitaloceno-virus-machadoaraoz/?fbclid=IwAR1n7HOyGIT2XcUykJxOsdZuMe4wfqud9Id6snOSmBHV3iRLARwm-x9pPy0 – é a das pesquisas que estabelecem uma relação entre redução da biodiversidade e redução das barreiras naturais contra os virus. Essa hipótese induz de per si um ponto importante de agenda: a imposição de freios às monoculturas exportadoras e a ênfase na produção de alimentos e ervas medicinais.

    Que agenda para a pós-pandemia pode ser elaborada a partir da experiência da pandemia? A conversa entre Yayo Herrera e Joan Benach elenca alguns pontos importantes:

    – Remeter o cuidado – inclusive as políticas de saúde a um marco sócio-comunitário.

    – Garantir a vida através de uma renda básica universal. (No caso do Brasil, o prolongamento da renda emergencial precariamente conquistada com a pandemia.)

    Isso envolve políticas fiscais consequentes, mas também compensação a trabalhadores prejudicados – por exemplo por novas políticas ambientais. Fechar minas de carvão (no caso da Espanha), mas cuidar dos mineiros ; impedir o garimpo (no caso do Brasil), mas cuidar dos garimpeiros.

    Outra questão é a dos meios políticos de organização dessa disputa.

    Há bases já construidas: marcos cooperativos, movimentos. Com necessidades, no entanto, que precisam ser explicitadas.

    Aprender a trabalhar juntos fazendo do comum um princípio de ação.

    Zona_de_Contágio_4_Angelina

  3. Quero começar este comentário chamando nossa atenção para um aspecto do nosso último encontro febril: estávamos mais “engessadinhes” nesse último encontro. Fiquei muito agradicida com as formulações propostas pelo Ricardo Teixeira, muito atravessa até agora e vai continuar atravessando, foi sensacional termos a possibilidade dessa troca. Mas tive a sensação de que ontem, de leve, nossa febre baixou em um prognóstico de reprodução de formato que mantém narrativas sobrepostas àquelas mais ancestrais, de relação mais livre entre as narrativas e menos transformadas em fechamentos. Senti o respiro em conversa das duas semanas anteriores mais possível (não que ontem não tenha sido).

    No mais, além de fan base de Deleuze, Preciado e cia de pensadores em comum que nos atravessam; também me declarei fan base de Mario Bross. Antigo atravessamento: Nintendo Super, Nintendo 64… Agora tamo no Nintendo Switch e Mario Bross Odissey foi o jogo de lançamento do novo console: sensacional, joguei no emulador pra PC, comprei o controle na Sta. Ifigênia \o/. O Mario Bross sob o controle de sua chará, segundo um amigo igualmente fã, é o Mario mais lento da fan base. Porque eu gosto de pegar TODAS as moedinhas, luas e cogumelos de TODOS as fases e CADA canto escondido que um jogador ou jogadora normais passariam de fase sem sequer explorar, afinal, a missão de salvar a princesa é o objetivo do jogo. Eu, cá pra mim, cago pra princesa, deixo ela lá esperando e vou explorando cada fase não querendo que o jogo acabe. Tanto que com a princesa já salva do Bowser (o tartarugão vilão) e as fases todas abertas, eu fico voltando pras telas pra ver se eu não deixei nada pra trás. O Bowser e o Mario são arquirivais. Salvar a Princesa Peach tem a ver com não deixar que o Bowser ocupe e governe o Reino dos Cogumelos. É mais que salvar a princesa: é livrar ela da rendição do Bowser para salvar o reino que ele quer dominar! Os cogumelos são mágicos? Não exatamente… Muita gente interpreta que sim. Mas o mais importante nessa história é que os cogumelos são fonte de energia, Bowser os quer como recurso, como poder e isso pode devastar o reino!

    Shigeru Miyamoto é o criador da série Mario Bross, Donkey Kong e The Legend of Zelda. Todos distribuídos pela Nintendo. Gosto MUITO dos três, mas o Mario Bross é o meu mais que preferido. Além de meu chará, o cara curte cogus e é um italiano que nada tem de italiano, porque onde já se viu italiano mais nikkei?
    Nas capturas do controle, há cogumelos que nos fazem crescer novamente! Em nenhum momento o Mario foge do Bowser, ele vai desarmando as armadilhas do inimigo espalhadas pelo reino e passando as fases com a ajuda da energia dos cogumelos.
    Numa ocupação feito a de Bowser que a gente tem nas nossas cidades, desarmar as armadilhas das máquinas pandêmicas! Cada canto tem uma. Olho aqui na esquina aquela de triturar asfalto, executada por um humano de duplo protetor auricular e máscara. Também dentro da armadilha de as tropas da Força Tática se apropriarem da cena de assistência à população de rua, há cogumelos de poder, esses não fazem mais crescer…

    No tudo virando tudo e nada virando nada, ainda termino insistindo: assistam Akira! Porque o medo do desconhecido faz do poder uma tentativa de controle da força Akira parecida (e diferente) do controle sobre o reino dos cogumelos. Bowser e Mario são caricaturas mais lúdicas. Em Akira essa disposição fica colocada dentro de uma narrativa que tem em Akira uma força de transformação de proporção global, temida pelo poder, instrumentalizada pelo poder. E o poder não controla nem o desejo de juventude de Tóquio de ir ao encontro da transformação e nem a dimensão não-humana dela.

    Enorme abraço!

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